quinta-feira, 2 de julho de 2015

Vida Ignorada de Leonor Teles. António Cândido Franco. «Olhava dona Leonor Meneses, sua prima, modelo de casquilhas e linguareiras, e não se impedia de comentar. Deus me guarde de tal modo! Não há mofina pior que viver amiúde em faladuras de alheios»

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O Comércio do Invisível
«(…) Pela segunda vez, se sentiu Deus desiludido com a sua criação. Primeiro, aspectos ingovernáveis da omnisciência dos planos subtis, haviam feito degenerar a sua primitiva obra numa batalha campal entre duas facções rivais; agora, a própria degradação dos planos subtis de tal modo se infiltrara na sua nova modelação, que do primeiro estado da Terra nada restava. Nem tudo estava ainda assim perdido, já que a humanidade podia optar por uma aliança com os anjos da Luz, repelindo os rebeldes; um tal conluio se revelaria até decisivo para o recuo definitivo das legiões diabólicas, se não para o seu aprisionamento e posterior desaparecimento. Não podia porém restituir à humanidade a sua primitiva imortalidade; tudo o que lhe sobrava era esperar, ansioso mas distante, o resultado da livre escolha do homem e da mulher. Retirou-se pois o Criador para o píncaro do seu universo, aí onde a Luz podia brilhar sempre no meio-dia.
Era o seu reduto e aquele que mais próximo estava do seu estado inicial, quando a criação não se diferenciara ainda do seu Criador e todos os problemas correlatos que daí advieram eram desconhecidos. Entregou o comando das operações contra os revoltosos aos seus arcanjos e a vigilância dos seus domínios aos querubins e serafins. Ele ficou entregue ao Nada, que fora a sua primitiva existência. Apenas saía desse estado de nolição, para tomar contacto com a sua coorte e activar em momentos particulares uma subtil intervenção providencial na nova natureza material da Terra. Ele não podia restituir a inocência original à humanidade, e por via dela o seu glorioso estado de imortalidade inicial, mas podia não obstante, por uma intervenção pontual bem dirigida, agir sobre ela, aclarando o seu discernimento e acelerando as suas escolhas a favor da Luz e do Bem. Assim acontecera com Noé e Abraão, assim sucedera com Jacob, com José e com Moisés. Assim se voltara a cumprir com David, com Salomão, com Daniel e com os profetas. O derradeiro momento dessa intervenção era a presença de Jesus Cristo na história da humanidade. Jesus era o Filho unigénito do Criador, uma emanação da Luz mais alta, um emissário da inteligência divina, propositadamente enviado à humanidade para se misturar com ela. Por Ele se havia encetado o processo da definitiva redenção da Natureza material degradada da Terra e a sua resoluta reintegração na Luz pura do Pai.
Eis a visão que dona Leonor Teles tinha da criação do plano terreno. Percebiam-se nesta visão aspectos seminais que vinham da formação com o cónego de Braga unidos a outros que eram apenas o resultado da sua índole de solitária e imaginativa. Caso os manifestasse, seria com certeza repreendida, ainda que brandamente, pois nela se via pudor, concórdia com a eucaristia, que todos os dias tomava, e fé na figura de Cristo. Mas ela, fechada e anacoreta, guardava o que pensava. Vivia desejosa de solidão; por ela resguardava segredos e salvava o invisível. E por essa porta chegava o eflúvio divino dos primeiros tempos, a que ela se habituara, depois da lição do cónego, a chamar de bdélio. Tinha consciência que o seu saber era o resultado dum dom invulgar, que pouco se semeava e mais raro se colhia; se o não calasse, roubar-lho-iam. A mediunidade com que soubera observar primeiro a história da vida terrena, desde o parto no paço de Zamora até à estação do Paraíso, e depois a existência dos mundos invisíveis, a partir das auras emanadas pelos seres materiais até às manifestações dos mundos subtis primordiais, alertara-a para a raridade da sua situação, levando-a a instituir um contraste com os contemporâneos. Olhava dona Leonor Meneses, sua prima, modelo de casquilhas e linguareiras, e não se impedia de comentar. Deus me guarde de tal modo! Não há mofina pior que viver amiúde em faladuras de alheios». In António Cândido Franco, Vida Ignorada de Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-59-5.

Cortesia de Ésquilo/JDACT