quinta-feira, 3 de abril de 2014

Elogio da Loucura. Erasmo. «E o que caracteriza a natureza destas coisas é que quanto mais estultícia tiverem, mais alegram a vida dos mortais. Porque a vida, se for triste, nem sequer merece o nome de vida»

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Fala a loucura
«(…) Mas já é tempo, como diria Homero, de deixar as regiões celestes para descer à terra onde não encontramos nem letícia nem felicidade sem a minha ajuda. Vede primeiramente que providência a da Natureza, genitriz e fabricante do género humano, a de deixar em tudo o condimento da loucura. Com efeito, segundo a definição dos estóicos, a sapiência não é mais do que a conduta da razão; pelo contrário, a loucura consiste em deixar-se levar pelas paixões. Para que a vida dos homens não fosse inteiramente triste e tétrica, Júpiter deu-lhes mais paixões do que a razão, na proporção de um grão para meia-onça. Além disso relegou a razão para um canto estreito da cabeça, deixando o resto do corpo entregue às paixões. À razão opôs ainda dois tiranos violentíssimos a ira, que tem a sua sé no peito, com a própria fonte da vida que é o coração, e a concupiscência cujo império se dilata até ao baixo-ventre. Quanto vale a razão contra estas duas forças reunidas é o que a vida comum dos homens satisfatoriamente nos mostra. A razão pode gritar até enrouquecer para fazer cumprir as fórmulas da honestidade; é rainha a que os homens não obedecem, a que os homens replicam com injúrias, até que emudeça ou se declare vencida.
Mas o homem, nascido para administrar as coisas, deveria receber um pouco mais do que uma onça de razão. Júpiter consultou-me a este respeito, e dei-lhe um conselho digno de mim: o de unir a mulher ao varão. A mulher é um animal louco como nenhum, inepto, ridículo e delicioso que no convívio doméstico atenuaria a tristeza do engenho viril com a loucura feminina. E claro que, quando Platão parece hesitar em incluir a mulher entre os animais racionais, nada mais pretende do que indicar a loucura insigne desse sexo. Quando por acaso uma mulher quer passar por sábia, não faz mais do que dizer que é duas vezes louca. Ninguém vai ungir um boi para a palestra, nem Minerva o consentiria. Não procedamos, pois, contra a natureza; o vício fica agravado quando dissimulado de virtude, por maior que seja o engenho. É bem justo o provérbio grego: um macaco é sempre um macaco, ainda que vestido de púrpura. Assim também a mulher é sempre mulher, quero dizer sempre louca, ainda que ponha uma máscara.
As mulheres não me podem levar a mal que lhes atribua a loucura, porque eu também sou, além de mulher, a própria Estultícia. Vendo bem as coisas, devem ser gratas à Estultícia que lhes permite serem muito mais felizes do que os varões. Têm a graça da formosura, mérito que antepõe a todas as coisas, e que lhes serve para tiranizarem os próprios tiranos, O varão tem as formas rudes, a cútis híspida, a barba selvagem, e tudo isto o envelhece embora signifique sabedoria; as mulheres, com as faces sempre macias, a voz sempre doce, a pele sempre lisa, têm a seu favor os atributos da juvência perpétua. Por que optam elas nesta vida, senão por agradar da melhor maneira aos varões? Não é essa a razão de tantos cuidados, enfeites, banhos, perfumes, penteados, cosméticos, cremes, pinturas, de tanta arte no embelezamento do rosto e dos olhos? Não é a Loucura a deusa que lhes entrega da melhor maneira os varões submissos? Que é que eles não prometem às mulheres, e que é que eles não lhes permitem? E tudo isto em troca de quê, se não da voluptuosidade? Quem permite todas estas delícias é a estultícia. Basta reparar na figura que o varão faz, e nas tolices que diz à mulher quando pretende obter a volúpia que ela concede. Sabeis agora qual é o primeiro e o principal prazer da vida, e de que fonte decorre.
Mas há pessoas, especialmente os velhos, que são mais amigos das bebidas do que das mulheres, e que encontram a suma volúpia no molhar da garganta. Se pode haver um lauto convívio sem a presença das mulheres, outros que o digam. O que é certo é que nenhum seria agradável sem o condimento da estultícia. Se aos convivas faltar vera ou simulada estultícia que provoque o riso, procura-se então o bobo mercenário ou o parasita ridículo que gracejando, isto é, dizendo loucuras, expulsará do banquete o silêncio e a tristeza. De que valeria contentar o ventre com manjares, guloseimas, se aos olhos, aos ouvidos, e à alma inteira não forem dados risos, palavras jocosas, frases alegres! Ora sou eu a organizadora desses divertimentos. Todas as cerimónias dos banquetes, deitar as sortes para escolher o rei, fazer brindes, cantar em coro, dançar, pantominar, não foram inventadas pelos sete sofos da Grécia, mas por mim, para a felicidade do género humano. E o que caracteriza a natureza destas coisas é que quanto mais estultícia tiverem, mais alegram a vida dos mortais. Porque a vida, se for triste, nem sequer merece o nome de vida. É preciso fugir da tristeza, e do tédio que é parente dela, por este género de divertimentos». In Erasmo de Roterdão, Elogio da Loucura, tradução de Álvaro Ribeiro, colecção Filosofia e Ensaios, Guimarães Editores, Lisboa, 1987.

Cortesia de Guimarães Editores/JDACT