domingo, 6 de abril de 2014

Navegadores. Viajantes. Aventureiros Portugueses. Séculos XV e XVI. Luís Albuquerque. «Seria tal carta de António Fernandes? Teria ele descido de Mombaça até Moçambique? E, sendo assim, por que razão escreveu deste ponto uma carta para Quíloa, para onde certamente pensava dirigir-se, como de facto fez?»

Tarefa do maior interesse para uma segura progressão da expansão portuguesa
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António Fernandes. O aventureiro na rota do ouro africano
«(…) Como João Machado foi largado na área em que António Fernandes também ficou, inclinamo-nos a crer que este, como alguns sugerem, tivesse seguido para o oriente na armada de Pedro Alvares Cabral. Fortalece esta suposição a circunstância de dois historiadores e ainda Fernão Lopes de Castanheda, nos dizerem que Pêro Ataíde, companheiro de Cabral, deixou na aguada de São Brás, metida em um sapato, uma mensagem para ser lida pelos navegadores que ali viessem logo após ele; dava nela notícias mais ou menos pormenorizadas quanto ao modo como ia decorrendo a viagem, e acrescentava que em Mombaça encontrariam mais notícias suas, que ficariam em mão de António Fernandes, que ali estava. É claro que se apenas se dispusesse desta informação seria de crer que ele lá fora deixado por Vasco da Gama, e que Pedro Álvares Cabral e os seus companheiros tinham sabido disso em Lisboa, antes de partirem. Todavia, não é esta a interpretação correcta daquele texto, já que, a respeito da viagem de João da Nova, o mesmo historiador João de Barros afirma que, quando os navios dessa bem sucedida armada foram a Quíloa, ali acharam António Fernandes, carpinteiro de naus, que Pedro Álvares [Cabral] deixou....
Pode-se, portanto, afirmar que o texto atribuído a Pêro Ataíde não pode ser interpretado à letra. Ele quereria talvez dizer que Fernandes estaria já em Mombaça, com mais novidades, quando o leitor da sua mensagem por lá passasse; naquele momento, porém, estaria ainda na armada. Não é difícil explicar que tempos depois de deixado em Mombaça o degredado tivesse passado a Quíloa.Tudo isto parece, aliás, claro quando lido com atenção o referido passo de João de Barros; mas já o é menos o trecho em que o historiador afirma que João da Nova também aí encontrou uma sua [carta] que lhe enviou de Moçambique por um zambuco de mouros, quando por aí passou... Seria tal carta de António Fernandes? Teria ele descido de Mombaça até Moçambique? E, sendo assim, por que razão escreveu deste ponto uma carta para Quíloa, para onde certamente pensava dirigir-se, como de facto fez?
Damião de Góis é mais explícito, pois afirma claramente que uma carta entregue por Fernandes a João da Nova lhe fora confiada por Pedro Álvares Cabral; mas ambos informam que era do mesmo teor da deixada por Pêro Ataíde na aguada de São Brás. É claro que a versão de Góis tenta clarificar o que Barros deixara um tanto obscuro. Mas a explicação corresponde à realidade, ou não terá sido introduzida arbitrariamente? Não há dúvida, no entanto, que Fernandes esteve algum tempo em Quíloa. Não se pode negar que o passo de Barros até agora utilizado nos não crie embaraços. Na continuação, porém, torna-se mais claro e explícito; diz assim: …e  entre algumas coisas de que lhe Fernandes deu conta do que se passava entre aquela bárbara e infiel gente, foi que ali estava um mouro chamado Mafamede Ancone, que lhe tinha feito muita honra, e tanta que, se por ele não fora, alguns mouros o mataram.

Este Ancone (chamado por outros autores Alcone ou Arcone), que desempenhava então o importante cargo de escrivão da Fazenda do rei de Quíloa (ou seja: uma espécie de secretário de finanças), veio a ter preponderante influência no domínio dos Portugueses neste porto africano; quando, no decurso da sua segunda viagem, Vasco da Gama ali passou e firmou paz com o rei local, sob a ameaça de lhe destruir a cidade, Ancone esteve sem dúvida entre os áulicos do rei que o aconselharam a capitular. Fernandes ainda então vivia na cidade, pois uma crónica anónima da Biblioteca Nacional Britânica afirma que o rei, à chegada de Gama, mandou logo visitar o almirante pelo cristão degredado que aí era, ao mesmo tempo que lhe enviava um presente de refresco, que Gama, para marcar distâncias, se recusou a aceitar. Devemos acrescentar que Mafamede Ancone se mostrou sempre disponível e solícito para com os portugueses das sucessivas armadas que passaram por Quíloa. Foi por isso que, quando Francisco de Almeida se decidiu a desbaratar o exército real e a destronar o rei de Quíloa, pelos problemas que este sempre levantava às armadas e por não respeitar convénios, não hesitou em escolher Ancone para ocupar o trono vago; contava com a sua boa vontade que, aliás, se manteve sólida. Voltemos a António Fernandes.
Do que vem de ser dito é legítimo tirar a ilação de que ele acompanhou Cabral, ficou em Mombaça, daí passou a Quíloa, onde estava bem relacionado e até dispunha da protecção de personagens altamente colocadas. Todavia, existe uma nota discordante com este quadro traçado a partir de testemunhos de textos escritos no século XVI: e vem de Gaspar Correia. Na verdade, ele diz que o degredado de Quíloa se chamava Pêro Esteves, e adianta que ele fora ali deixado por Vasco da Gama. Correia é muitas vezes tido como falsificador de textos e de factos, embora, na maioria dos casos, sem qualquer razão, como salientou Manuel Lopes Almeida; neste passo talvez tenha sido atraiçoado pelas informações que lhe forneceram, pois o pouco que sabemos da vida de António Fernandes está perfeitamente de acordo com o que nos é transmitido, como se viu, por outros textos. A crer em João de Barros, num passo anteriormente citado, Fernandes terá sido obrigado a converter-se à seita de Mafamede; o historiador chama-lhe arrenegado e diz que se incluía entre os sitiantes da fortaleza de Angediva, em 1506; ignora-se quando voltou ao grémio da Igreja de Roma (se é que dele verdadeiramente saiu) e como e onde foi aceite de novo pelos seus compatriotas. Assim, Fernandes foi certamente para Sofala um ou vários anos depois de 1506. Em documento a que adiante teremos de nos referir mais de espaço, datado de 25 de Junho de 1516 e que o historiador sul-africano Eric Axelson pela primeira vez publicou, isso é confirmado». In Luís de Albuquerque, Navegadores, Viajantes, Aventureiros Portugueses, Séculos XV e XVI, António Fernandes, Editorial Caminho, Lisboa, 1987.

Cortesia de Caminho/JDACT