«A impossibilidade de transformar
o texto no espelho da realidade tem consequências estruturais e conceptuais
difíceis de ignorar, implicando a ausência de objectividade. Se isto é verdade para
qualquer tipo de texto, não deixa de ser verdade quando o discurso se debruça
sobre matéria histórica, instaurando um constrangimento entre a liberdade do
escritor e o conhecimento (lacunar, imperfeito, pouco importa) do facto do
passado. A certeza de que a imparcialidade não existe justifica e legitima o
início do romance A Tale of Two Cities, de Charles Dickens,
publicado em 1859, mas que parece já
reflectir as preocupações presentes nos textos da segunda metade de novecentos:
It was the best of times, it was the worst of times,
it was the age of wisdom, it was the age of foolishness, it was the epoch of
belief, it was the epoch of incredulity, it was the season of Light, it was the
season of Darkness, it was the spring of hope, it was the winter of despair, we
had everything before us, we had nothing before us, we were all going direct to
Heaven, we were all going direct the other way. (Dickens 1985)
A caracterização que é feita de
uma mesma época através de enunciados contraditórios deixa antever a
disparidade de focalizações e, simultaneamente, a falência de um conhecimento
seguro. Pierre Barbéris faz a distinção entre História, História e
história, partindo do facto objectivo até à sua textualização histórica e
literária. Se atentarmos no que afirma Teolinda Gersão:
A
História começa onde começa a escrita (…). Antes é apenas um tempo informe e
sem medida.
(Gersão
1984)
Percebemos que, mesmo quando se
trata de enunciados pretensamente científicos, devemos sempre contar com a descodificação
das condicionantes externas, como a convenção ou o discurso da autoridade e
posterior codificação em outros modos de percepcionar o real. Perante a certeza
da total ilusão de realidade, o sujeito narrativo não se preocupa em escrever a
verdade, mas delega essa responsabilidade nas vozes autorais de outros tipos de
discurso, acabando por se compenetrar de que a realidade é frequentemente
ficção. O difícil equilíbrio entre o real e a sua transposição para a escrita
traduz-se de variados modos e, ao longo dos tempos, por formas, frequentemente,
opostas, de trabalhar a História como matéria literária. Peter Burke, no
valioso ensaio The Renaissance Sense of the Past, chama a atenção
para as anacronias presentes ao longo dos tempos, para a ausência de
perspectiva histórica na Idade Média e para as alterações que as relações entre
História e Literatura foram sofrendo até ao século XIX. Burke acentua também a
diferença entre aparência e realidade, na medida em que o jogo que se
estabelece entre as duas se revela gerador de sucessivas máscaras, que o texto
esconde e desvenda, num vertiginoso movimento. Agustina afirma que No
fundo, o que interessa ao historiador não é a verdade, mas uma teoria, o
que vem corroborar a ideia de que a verdade não existe e que se tenta a todo o
custo atingir algo que escapa e desaparece, sempre que parece estar ao alcance
do conhecimento. Burke demonstra que a perspectiva histórica implica a ausência
de duas coordenadas: esquecimento do passado e demasiada identificação com
ele». In Maria de Fátima Marinho, As Máscaras do Passado, Universidade do Porto, Revista Limite, nº 2, 2008, ISSN
1888-4067.
Cortesia
da UPorto/JDACT