quarta-feira, 16 de abril de 2014

Confissões de Uma Freira Pagã. Romance histórico. Kate Horsley. «Os olhos, o nariz e a boca dela pareciam juntar-se mais, numa concentração solene. Às vezes uma risada saía dela, como um pássaro que repentinamente voa de um galho»

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Declaração
«(…) Nos últimos anos de vida da minha mãe, ela fazia parte do Conselho de Mulheres da nossa região e portanto viajava uma vez por ano para a feira de Tailltenn. Nesses tempos, havia um Conselho de Mulheres e um Conselho de Homens nos quais eram discutidas as preocupações e segredos das túaths respectivas. Eu só fui com ela duas vezes, antes de os vermes a terem adoentado. Nesses anos, eu era ainda muito nova para assistir ao Conselho e então esperava por ela debaixo da árvore dos druidas. No primeiro ano, a minha mãe começou a treinar-me para ser um membro do Conselho. Quando íamos a pé para casa e passávamos a noite numa albergaria pública, situada no cruzamento onde a estrada do leste se cruza com a do norte, ela fazia-me olhar nos seus olhos. Ela lembrava-me então que os nossos olhos provinham do mesmo poço, de um verde profundo como o do azevinho. Ela falou-me das palavras que as mulheres diziam no início das suas reuniões e a ordem pela qual elas podiam falar. Durante longos períodos do nosso regresso a casa, pela estrada do norte, ela não dizia nada, nem sequer contava uma história. Os olhos, o nariz e a boca dela pareciam juntar-se mais, numa concentração solene. Às vezes uma risada saía dela, como um pássaro que repentinamente voa de um galho. O galho mexia-se mas estava vazio e eu sentia, então, que morreria de fome se a minha mãe não me alimentasse com as suas palavras.
No segundo ano em que a minha mãe me levou à feira de Tailltenn, ela tinha-se tornado selvagem com o cansaço e com a resolução de viver, pelo menos uma parte da sua vida, sem preocupações. Quando ela estava longe do meu pai, que a prendia com os medos dele, ela tornava-se selvagem, como um lobo que foi domesticado somente no pêlo mas não na carne. Ela até uivou uma vez, atirando o seu cabelo para trás e erguendo a cara a um céu sem lua, enquanto eu a olhava toda arrepiada. Na albergaria pública, ela juntava-se aos homens para praticar actividades irreverentes, como quando bebia mead fornecido pelo tá náise. Ela ria-se bem das sátiras cantadas pelos druidas, velhas sátiras sobre homens mortos e sem herdeiros, que não eram perigosas de se ouvir. Ela apertava-me contra ela quando íamos para o canto dormir e segredava-me ao ouvido que as pessoas precisavam de ervas e histórias, e às vezes de cerveja, para vencerem a sua dor. Comecei a ver que a dor e o desejo de conhecimento começaram a tomar lugar nas histórias que me contava. Cedo aprendi que ninguém, nem o chefe mais adorado, está livre dos vermes, de armadilhas traiçoeiras, de animais ferozes ou do peso da mágoa. Os seres humanos mais livres que observei foram os aesdána que iam à feira de Tailltenn e que podiam viajar de túath em túath sem recearem ser atacados ou expulsos. Eles não estavam obrigados a qualquer lealdade. Transcendiam as afiliações políticas e matrimoniais e viam o corte da cabeça na mandíbula de um guerreiro não como uma glória tribal, mas como parte de um mistério eterno, muito maior que a reputação de uma única túath. Dizia-se que os druidas eram capazes de parar a guerra com um nevoeiro negro e de transformar um rei em tolo com as suas sátiras, palavras tão poderosas que são ainda mais cortantes do que as espadas.
Os poemas e as histórias dos druidas remontam a tempos anteriores aos dos antepassados de qualquer um. Eles sabiam histórias e geografias, rituais e profecias tão grandiosas que faziam a vida de um homem mortal parecer uma pequena pena, deixada cair por um pássaro a dormir com a sua cabeça enfiada na asa. O poder do druida era o conhecimento e o conhecimento vinha em palavras. Comecei, então, a desejar o poder dos druidas. Porque se alguém não tem conhecimento sobre o que fazer ou pensar, outro dir-lhe-á o que fazer ou pensar. O meu maior desafio é conseguir obedecer ao que os outros me dizem, que Deus me perdoe. Os dedos da minha mãe a segurar as ervas, sujas pela terra preta donde as desenterrou, e a sua boca alegre, enrolando-se num dos lados, são retratos da liberdade pagã que eu não consigo purgar nem deixar de amar». In Kate Horsley, Confessions of a Pagan Nun, Confissões de Uma Freira Pagã, Romance Histórico, Ésquilo, Lisboa, 2002, ISBN 972-8605-18-8.

Cortesia Ésquilo/JDACT