A Corte de Manuel I
«(…) Mas Gois e grande
número dos seus contemporâneos também viam nesses animais os mensageiros de um
outro continente; os elefantes inspiravam-lhes orgulho no poder do homem sobre
as forças selvagens da natureza. Assim como os astronautas da era espacial são
considerados heróis nacionais, também os aventureiros portugueses do além-mar que
tinham descoberto as terras donde vinham os maravilhosos elefantes devem ter
suscitado em Góis e nos seus
compatriotas uma grande impressão de orgulhos. Embora a Índia tivesse atraído
sobremaneira a atenção de Góis durante
muitos anos, outras civilizações estrangeiras tiveram para ele um significado
pessoal. Estava presente quando foram apresentados ao rei alguns Índios do
Brasil; Manuel I informou-se jovialmente do modo como viviam e desafiou-os a
demonstrarem a sua famosa destreza com o arco e a flecha. Foi este o primeiro
contacto de Góis com uma tribo
primitiva, e dá-nos um exemplo da atitude despida de preconceitos que ele tinha
para com a gente simples. Em vez de se sentir superior e condescendente, ou de
conceber uma ideia romântica dos Índios, Góis,
com curiosidade espontânea e calor humano, via-os tal como eles eram de facto. A
capacidade de Gois para se colocar
no lugar dos outros revelou-se particularmente no seu encontro com Mateus,
emissário do Negus da Etiópia a Manuel I em 1514 / 1515. Gois tinha apenas treze anos de idade
quando Mateus chegou a Lisboa com o oferecimento de uma aliança militar da
parte do Negus e com o pedido de que a Igreja etíope fosse admitida como
membro da comunidade cristã do Ocidente, esperança essa que viria,
infelizmente, a ruir.
Desde os tempos da Alta Idade Média que circulavam na Europa histórias
descrevendo a riqueza e o poder dum soberano cristão no coração da África ou da
Ásia. O Infante Henrique tinha mandado os seus marinheiros para o alto mar na
esperança de o descobrir e de fazer dele um aliado contra os mouros. Agora
tinha-se finalmente encontrado o fabuloso Negus mas as aspirações
religiosas dos seus súbditos haviam de ficar frustradas. O monarca Manuel I
considerava a Etiópia um aliado militar desejável, potencialmente útil contra
as arremetidas dos turcos em direcção ao Mar Vermelho, e recebeu Mateus com
todas as honras devidas ao representante duma grande potência. Apesar disso, a
resposta que deu ao pedido que o Negus fazia em matéria de religião foi
francamente negativa. Reprovando os ensinamentos e as práticas religiosas dos
Africanos por pouco ortodoxas, o rei não tinha a menor intenção de
considerar a Igreja Etíope como parte do Catolicismo Romano.
Ao invés do rei, o jovem Góis
estava mais interessado na questão religiosa do que nos aspectos políticos da
mensagem de Mateus. Chega até nós, nas palavras do próprio Góis, o relato da longa conversa que teve com o emissário, o qual,
muito provavelmente, lhe explicou os pontos principais da religião etíope.
Embora se lhe tivessem apagado da memória os pormenores deste acontecimento, Gois estava bem lembrado do teor geral
do diálogo travado com Mateus. Nas viagens posteriores que fez ao serviço do
rei português Góis transmitiu a
pessoas conhecidas informações sobre a Igreja da Etiópia e manifestou o seu espanto
ante a expansão do Cristianismo até um posto tão remoto, pouco lhe interessando
as diferenças de dogma entre a Igreja africana e a católica. Pela vida fora
manteve-se favorável à religião etíope, defendendo-a vigorosamente quando já
amadurecido, apesar dos perigos que daí adviriam à sua reputação religiosa. Esses
contactos com outros países, resultantes das expedições além-mar dos
portugueses, influenciaram grandemente o espírito de Góis no sentido duma visão larga do mundo. Também ajudaram a criar
nele uma salutar consciência nacional e uma disponibilidade para aceitar ideias
novas em diversos campos do empreendimento humano. Excepto no desenvolvimento
do patriotismo, essas qualidades representam tendências do seu pensamento que em
muito se assemelhavam ao humanismo erasmista». In Elisabeth Feist Hirsch, The Life and Thought
of a Portuguese Humanist, The Hague Netherlands, 1967, Damião de Góis, Fundação
Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2002, ISBN 972-31-0677-9.
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