Teófilo contesta Herculano
«Raramente um homem terá suscitado tão unânime e severo coro de
impropérios, verdadeira cascata de doestos chovendo durante anos a fio sobre o
lendário guarda-chuva do professor ‘Teófilo’.
Vimos já que Herculano rotulava
Teófilo de ratão (sic) - di-lo com
secreto júbilo o jovem estudante Junqueiro, em carta de Coimbra ao
editor Chardron, no ano de 1870.Ilgnoramos a exacta razão de semelhante
veredicto; mas, nessa altura, Teófilo era já um literato relativamente conhecido,
tendo ganho fumaças de celebridade por via da famigerada Questão Coimbrã; além da Visão
dos Tempos, de Tempestades Sonoras e de A Ondina
do Lago, o açoriano já botara certa presença de assinalar nos arraiais
literários, publicando um ou outro livreco, como a História da Poesia Popular
ou o Cancioneiro
Popular, sem contar com os
estudos ligados ao seu doutoramento em Coimbra, as Teses sobre diversos ramos de
direito, as quais na Universidade de Coimbra em 1868 defenderá Joaquim Teófilo
Braga, mais a História do Direito Português e Os
Forais.
No ano anterior, em 1869, tinham saído os livros Torrentes e a História
da Poesia Moderna em Portugal, sendo de 1870 os livros História
da Literatura Portuguesa, a História do Teatro Português e ainda
outras obras eruditas. Herculano
estava, pois, habilitado a :pronunciar-se já sobre o valor deste confrade de 26
anos, quando confessava a Junqueiro que achava mestre Teófilo um
ratão.
É preciso acrescentar que os dois homens se conheciam. Di-lo Teófilo em carta
publicada no livro Mocidade de Teófilo, obra que apresenta a peculiaridade de nela
se terem refundido, à guisa das conveniências, o mais a posteriori e post mortem possível, as cartas escritas várias
décadas antes: com espantoso à vontade e perfeito sentido de falsificação
anacrónica, Teófilo não hesitou em amanhar as cartas que tinha ido compondo ao
longo da sua vida, sendo, pois, de tomar com o mais decidido cepticismo o teor
de semelhantes missivas alindadas ao bel-prazer do célebre polígrafo. Numa
dessas cartas, incluídas no referido volume, conta Teófilo como conheceu Herculano no Grémio Literário, no Natal
de 1864:
- ‘Estava rodeado de admiradores estáticos e ele falando com monossílabos e tons proféticos. Não lhe falei, nem ele me dirigiu a palavra, mas dias depois do 1º de Janeiro deu-se um caso, em que nos encontrámos frente a frente. Descia a Calçada do Combro um regimento com a charanga à frente e adiante bandos de rapazio. Recolhi-me a um portal de uma escada pegada ao palácio do conde de Cabral; eis que de repente Herculano se refugia aí também, e enquanto a música e tropa passava com o povoléu para a abertura solene das Câmaras, conversámos nesses rápidos momentos acerca das novas ideias sobre a arte gótica e as descobertas arqueológicas designadas como Arte Francígena. (carta de 16 de Janeiro de 1865)’.
Apócrifa ou não, ajeitada a posteriori
por Teófilo ou não, o facto é que desta carta resulta que os dois homens se conheciam
pessoalmente. Uma carta de Herculano
a Oliveira Martins, agradecendo o
envio do opúsculo deste último acerca de Teófilo
Braga e O Cancioneiro e o Romanceiro
Português, confirma-o, uma vez que nela se vê o autor dos Solemnia
Verba pronunciar-se sobre o açoriano:
- ‘Teófilo Braga é uma inteligência completa e uma grande vocação literária, mas uma fraca vontade: gosta de fazer ruído: deseja adquirir reputação; não possui, porém, o querer robusto que vai até ao sacrifício, que vai até ao martírio, e que é preciso para se tornar um homem verdadeiramente superior[…]»
In João Medina, Herculano e a Geração de 70, Edições Terra Livre,
Lisboa, ano IV da Liberdade, 1977.
continua
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