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«Como por quase todas as mulheres que conheci, e até pelas que detestei,
sinto uma certa piedade. São tempos difíceis estes em que vivemos e ao longo
dos séculos as mulheres têm sido sempre as maiores vítimas. Esta Rainha sem
marido, metida numa intriga que a ultrapassava, recentemente marcada pelas
dores do parto e as agonias de um quotidiano feroz, fez-me sempre uma certa
pena. Guardo dela as descrições de uma pobre mulher sem qualquer tipo de beleza
excepcional, mas meiga, indecisa, absolutamente indefesa também e a quem o
cunhado nunca perdoou os defeitos, a arrogância, as desconfianças e a inimizade
contra a sua própria mulher e a quem retirou tudo, até o favor do regresso para
perto dos filhos, depois da sua precipitada fuga para Castela. Creio que a sua
presença então, em Portugal, nunca interessou a ninguém, nem aos seus apostados
e conhecidos apoiantes.
Ninguém a desejava. Ela representava a peça inerte, insignificante, que
se pode e deve destruir porque já não serve a ninguém. De resto, teve o cuidado
de não proferir nunca uma frase inteligente nem praticar uma única acção
conveniente e credível da sua competência política. Isso matou-a no jogo de
vida e de morte desde as Cortes de Lisboa até ao seu fim verdadeiro, em
Fevereiro de 1445, em Toledo, talvez envenenada. Faminta, na mais desgraçada e
abjecta penúria, longe dos filhos, do amor fosse de quem fosse, como uma cadela
sem dono, assim se finou a Rainha de Portugal, que foi a avó materna do grande
Rei João, aquele que fechou os olhos negros em Alvor, num pôr do Sol como só os
há nas praias do Sul de Portugal, já com a pureza e a luminosidade das cores do
céu do Mediterrâneo e da antiga África romana. O Canto do Cisne do Infante iria
durar pouco tempo também. Apenas cerca de dez anos. Mas os dados tinham sido
lançados e já nada poderia fazer voltar atrás a roda do destino, nem para ele,
nem para ninguém. A sua própria mulher, a desditosa duquesa de Coimbra, que no
dote lhe trouxera a hipotética Coroa de Aragão que um dia um filho seu iria cingir,
reduziu-se também ao anonimato, refugiando-se em Santa Clara.
Amou-o, certamente, embora só o tivesse visto uma vez antes do casamento,
se é que o viu, a esse enigmático Infante de Portugal. Deu-lhe vários filhos e
viveu a seu lado vinte e um anos. Nem sempre a paixão é a única razão do amor,
mas Isabel de Urgel soube manter-se-lhe fie até ao fim.
O Cálice e a Serpente
Contam os velhos que um dia, indo o Infante Henrique, durante a
menoridade do infante Afonso, visitar o irmão Pedro a Coimbra, e achando-se
perto da porta de S. Bento, mesmo sobre a ponte do Mondego, olhou as armas da
cidade ,uma mulher sobre um cálice, coroada e com um seio amamentando um leão,
enquanto o outro amamentava uma serpente. Na pedra escurecida pelo tempo o leão
e a serpente pareciam observar-se quase acrimoniosamente, enquanto se amamentavam
nos fartos seios da mulher. O infante Henrique, de costume sisudo e
mal-encarado, no geral pensativo e de cenho franzido, como se pensasse sempre
em qualquer outra coisa, dando a perfeita impressão de que não participava
nunca com os outros do que acontecia à sua volta, sorriu e apontou o escudo d’armas
ao irmão e exprimiu a sua opinião, o leão era Castela, a serpente o timbre das
armas da dinastia fundada pelo pai... e ele, o I’nfante das Sete Partidas’, a
figura que dá mantimento a Castela de um lado e a Portugal do outro... Pedro mirou
as armas da cidade e não sorriu:
- ‘Por baixo está um cálice, meu irmão, não reparastes?’ O cálice ou o cadez que pode conter o vinho e o sangue. O Graal, porque não? Mas a taça cruel e amarga do infortúnio também. E o Infante, numa daquelas premonições que tantas vezes o assaltavam, respondeu que, talvez, ao cabo de tantos trabalhos e sacrifícios, o cálice e o sangue acabassem por se tornar no seu verdadeiro e injusto galardão. E não se enganou.
A sua divisa, “Désir”, não o protegeu do mal. Antes pelo contrário,
precipitou-o nele como se para que a Providência pudesse fazer brotar para a
vida futura o seu grande sonho ibérico, ele tivesse de se apagar e morrer na
sua crisálida ensanguentada nas margens de um ribeiro que se atravessava a vau,
nesse mês de Junho triste, onde apenas os medíocres cantaram a glória vã dos
pobres homens que julgam que podem comandar os ocultos desígnios do destino». In
Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial
Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
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