A morte de Lancelot
«(…) Mas Carlos é meu primo! É uma
questão de família! Vou falar com ele e servir de embaixador, de mediador entre
Borgonha e a França! E lá foi, em Agosto, cheio de esperança, depois de abraçar
a família, os amigos, a mulher-criança e entregar o Governo, mais uma vez, ao
Príncipe herdeiro. Era a derradeira etapa da sua desilusão, o fim do sonho do
Lancelot de Portugal.
Dona Ana Mendonça veio no séquito
da jovem Rainha para Portugal. Não sei quando o Príncipe teve tempo de a
encontrar de novo, mas não a esquecera. Não conheço, igualmente, o que pensou a
mulher do Príncipe, dona Leonor, jovem também, e apaixonada pelo marido. Ou não?
Ao longo de toda a vida sei que o Rei esteve sempre ligado à mulher, à Rainha.
Conheço até a sua dor se ela adoecia e a dor que ambos partilharam quando o
destino lhes foi adverso, mas duvido que ela o tenha amado. Eu experimentei
essa espécie de união e a outra não precisa de leis, normas, regras, a que
marca definitivamente uma vida e, se o não faz até à morte, porque nada é
eterno, deixa a sua marca funda em nós durante grande parte da nossa
existência.
Não sei o que dona Leonor sentia
pelo marido, no início, mas talvez fosse amor. No fim das suas vidas conheci
melhor os seus sentimentos e sei que o ódio foi mais forte e o ódio é muitas
vezes, também, a outra face de um grande amor. Dona Ana e João devem ter-se
visto entre o regresso de Castela e o Outono de 1480, quando decidiram viver os
dois a sua terna aventura em Cernache do Bonjardim, mas tudo se estabeleceu no
silêncio do segredo, na discrição e na etiqueta da Corte que rodeava dona Joana.
Nada transpirava. De resto, eram os admiráveis anos de aprendizagem do
Príncipe. Quatro anos de admirável estudo e aprendizagem. Em França, o pai
talhava com a sua proverbial imperícia o seu infeliz destino e o filho, por cá,
governava o Reino e meditava, como o viu, mais velho, centenas de vezes, o bom
do Resende (sempre gordo e reboludo, aquele simpático servidor de toda a gente,
dos Reis, quero eu dizer, sejam eles quais forem), como o viu, ao Homem,
pensativo, às vezes até triste pelas decisões que era obrigado a tomar, a
organizar a vida dele, a do Reino, a do mundo, em frente do seu tabuleiro de
xadrez, já longe dos amores, da paixão arrebatadora da carne, dos sentidos, na
missão sagrada que o poder confere e que se não pode trair ou falhar.
A partida do Rei, que desceu no
porto de Collioure, pressupunha o governo do Príncipe sem obstáculos, mas o
jovem percebeu que ficavam no Reino, e disso deviam ter convencido o Monarca,
Jorge Costa e o Bragança. É evidente que se devem ter prontificado a auxiliar o
Regente enquanto o pai tratava da sua espinhosa missão... O cardeal, homem
inteligente, deve ter percebido logo que a viagem do filho do eloquente Duarte I
de santa memória seria infrutífera. O Bragança, não sei. Era demasiado terra a
terra nas suas concepções políticas, de estado, para atingir um tal
discernimento. Homem de terras, senhor de grande poder, homem do século
devoluto como o pai e o avô, criado na velha tradição. Ao Príncipe, se não
disse nada, não agradaram aquelas duas fastidiosas presenças. Compreendeu
perfeitamente que apenas lhe serviam de censores, embora disfarçados, pois
apenas queriam controlar as acções de alguém que adivinhavam adverso à sua
causa.
Antes de Novembro, em Tours, o
Rei Afonso de Portugal, que nunca estivera em local tão frígido, num Inverno,
não teve esperanças de se encontrar face a face com o seu colega francês! Vira
parte da bela França, os seus castelos, as cidades, e observara, com a devota atenção
de um estudioso, os livros iluminados de Lanzarote e de Tristão. Finalmente,
ricamente vestido, com o fausto comum à Corte portuguesa, Afonso lá se achou no
vasto salão de recepção onde certamente ficou espantado com a ridícula e
enfezada figura daquele rei literalmente atabafado em roupas, pálido mas com
duas rodelas nas flácidas e magras bochechas, como os bêbedos, de nariz
comprido e fonte grossa e arredondada e com chapéu sob o qual ainda usava dois capuchos
e um barrete. Afonso não era um belo homem, estava prematuramente envelhecido,
mas perante aquele ser de aparência mesquinha, era imponente. Tudo no outro era
vulgar, ordinário, de má qualidade, menos a inteligência, a sagacidade de
raposa, a sua astúcia.
O
pobre Afonso de Portugal apenas recebeu promessas e esqueceu-se que só se
negoceia em condições idênticas, senão um é o pedinte e o outro, o que regateia
tudo, até a vida do que solicita, se for preciso. A fama do Rei de França chegou
até nós, a toda a Europa. Afonso de Portugal perdeu mais essa batalha. Quantas
mais crises e divisões na Península tanto melhor para o cristianíssimo Rei
Luís... Divide et Impera já o escrevera Júlio César». In
Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial
Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
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