A
Paz de Zamora. Coimbra 1143
«(…) Nessa mesma tarde, encontrei
Chamoa a passear pela almedina de Coimbra, acompanhada por seu filho Pêro Pais e
pelo amigo deste, Gualdim Pais. Bonita como sempre, com os seus cabelos loiros
apanhados num carrapito, a minha cunhada parecia melancólica. Quando lhe
perguntei a que se devia o seu semblante carregado, respondeu: Lourenço Viegas,
sabeis bem o que se planeia. Incomodado com a minha cara de falsa perplexidade,
Pêro Pais, que por esta altura já tinha dezasseis anos, questionou-me: minha
mãe será enviada para Tui antes ou depois do casamento de Afonso Henriques com
Mafalda da Saboia? Tentei tranquilizá-los, nada estava ainda decidido, as negociações
matrimoniais iriam iniciar-se. Mas Chamoa não se animou. Será que valho quatro
onças de ouro por ano? Esclareci que tal pagamento teria sempre de ser feito,
era assim que os reis ajudavam os papas, recebendo em troca as bênçãos deles,
mas ela ripostou que não valia a pena criar-lhe ilusões. Enquanto caminhávamos
de regresso ao castelo, enumerou os seus fortes opositores. Meu pai, que apesar
de tudo estimava, defendia claramente uma ligação matrimonial com uma princesa
estrangeira. E o arcebispo de Braga, João Peculiar, sempre moralista e hábil,
só pensava em satisfazer o Papa. Por fim, também Gonçalo Sousa, o alferes,
desejava o afastamento dela da corte, pois nunca esquecera, nem as atribulações
do passado, nem a afronta em Lisboa. Ainda por cima, acrescentou Chamoa, Afonso
Henriques deleita-se no colo quente da normanda Elvira Gualter! Não lhe
chego...
De lágrima ao canto do olho,
recordou-me de que dera a vida por Afonso Henriques e esta era a injusta paga. A
sua infelicidade era evidente, mas também existia nela uma espécie de desilusão
caprichosa, pois sonhara desde criança em ser rainha e essa fantasia
esfumava-se. Se Lisboa tivesse caído, se não tivéssemos perdido a relíquia...,
relembrou Chamoa, olhando para mim. Aqueles olhos verdes estavam a culpar-me
pelo seu infortúnio. Fora eu quem deixara roubar o tesouro da Terra Santa, em
Ourique. Se o houvesse guardado bem, o artefacto já teria sido entregue ao
Papa, Afonso Henriques já seria rei e certamente não era obrigado a casar com
uma princesa qualquer da Sabóia, podendo desposá-la a ela! Porque não atacamos
Lisboa outra vez?, perguntou Pêro Pais.
Aquele filho faria qualquer coisa
para ajudar a mãe, mas todos sabíamos que uma segunda tentativa de conquistar Lisboa
era inviável. Talvez não, disse uma voz, nas nossas costas. Era o almocreve
Mem, regressado da sua missão ao Su1, donde trazia resposta positiva. Ibn Qasi
aceitara encontrar-se com Afonso Henriques. Ansiosa, Chamoa perguntou: Onde? Só
na presença do príncipe é que Mem revelou as novidades, e logo ali ficou
decidida uma ida secreta às terras de Silves. Apenas eu acompanharia o almocreve
e o meu melhor amigo, mas no dia seguinte acabou por se juntar a nós mais um
viajante. Já no leito conjugal, Chamoa consumira-se de desconfiança, paixão
negra que tudo ensombra. Ides casar com Mafalda da Sabóla?, perguntara ela. Afonso
Henriques voltou a negar a intenção, o que a entristeceu fortemente, pois já
sabia o que ele aceitara na Sé. Julgo que foi nessa noite que deixou de
admirá-lo. O príncipe de Portugal desistira dela.
Que desprezo me tem...
Furiosa, levantou-se, anunciando
que ia dormir noutro quarto. Porém, Afonso Henriques obrigou-a a parar e logo
ali aceitou que ela fosse connosco a Silves, pois desejava-a! E ela deu-se.
Agoniada, mas deu-se.
Na noite seguinte, Chamoa, o
príncipe e eu acompanhámos Mem, envoltos em mantos e capuzes. Cavalgámos até à povoação
de Montemor, onde nos esperava um pequeno barco, no qual descemos o Mondego e
entrámos no mar. Tanto tempo depois, íamos rever a bela Zaida e era óbvio o
frenesim que assolava três dos viajantes. Afonso Henriques admitira casar com a
princesa, Mem fora amante dela e Chamoa era sua grande amiga. Certamente porque
essas memórias os agitavam, fui o primeiro a adormecer, enquanto a embarcação
velejava, silenciosa. E obviamente dormi sem saber que, no espírito atormentado
da minha cunhada, germinava uma enorme vontade de vingança». In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras,
2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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