«(…) O ponto essencial é que eles têm a virtude fora de moda da
devoção fanática à Santa Sé. Eles proclamaram e aplaudiram freneticamente seu
apoio em todas as apresentações públicas de João Paulo em todos os lugares do
mundo; eles atenderam à convocação de todos
os apelos do Papa e defenderam publicamente até as suas posições mais
impopulares. Não levou muito tempo para o Papa descobrir que ali estava a
força-tarefa de que necessitava. Disciplinados e militantes, os movimentos
podiam perfeitamente ser a Armada do Papa. Naturalmente, tratava-se de
uma via de mão dupla: os movimentos tinham muito a ganhar com este patrocínio
de alto nível. Além disso, tanto eles quanto o Papa tinham em comum um mesmo
problema: os bispos locais. CL e NC, em especial, tinham experimentado muitos
conflitos em dioceses de todos os cantos do mundo. O Concílio havia reavivado o
papel das igrejas locais e, em consequência, a autoridade dos bispos. O
conceito de colegiado, ou seja, a autoridade dos bispos como corpo unido com o
Papa, tinha sido enfatizado como uma espécie de contrapeso ao conceito de
infalibilidade. João Paulo não formulava o problema exactamente nestes termos.
Ele gastou toda a década de 1980 procurando manter sob o seu controle os bispos
e os seus conselhos nacionais, as famosas Conferências Nacionais de Bispos. A
centralização era um conceito sobre o qual os
movimentos sabiam muita coisa. Nas suas próprias estruturas, eles nunca
deram espaço para a democracia e sempre procuraram defender com paixão a ideia
de que não havia cabimento para democracia dentro da Igreja. Este apoio do Papa
transformou-se no cartão de visitas dos movimentos às dioceses locais, um cartão
de visitas especialmente útil em dioceses onde havia bispos hostis. Em
compensação, eles pregavam o evangelho do ultramontanismo.
O
arquitecto da restauração no Vaticano era o cardeal alemão Ratzinger, prefeito
da Congregação para a Doutrina e a Fé, mais conhecida como Santo Ofício, ou
Inquisição (maldita). Teólogo no Concilio, ele acabou passando sorrateiramente
para a direita nos anos 70, e atingindo o auge de sua posição de poder nos anos
80, perseguindo os seus antigos colegas, entre os quais alguns dos mais ilustres
teólogos católicos do mundo. Ratzinger acabou deixando a sua assinatura em
alguns dos mais duros pronunciamentos disciplinares do Vaticano. As poderosas
Conferências Nacionais dos Bispos passaram a ser o alvo preferido dos seus
ataques, na tentativa de trazer de volta a autoridade suprema do papado. Não é,
pois, de estranhar que ele, o Papa, se tenha transformado no ardoroso defensor dos movimentos, que
são, provavelmente, as únicas organizações de algum peso na Igreja que têm
todas as qualidades que ele admira. João Paulo é absolutamente franco quando
defende a autenticidade e a liberdade de acção dos movimentos: a intensa vida
de fé que se encontra nestes movimentos não implica que eles sejam
introspectivos ou que simplesmente se fechem numa catolicidade plena e integral
(...). A nossa tarefa, tanto como encarregado de um ministério na Igreja quanto
na qualidade de teólogo, é a de manter as portas abertas para eles e lhes
preparar um espaço.
Não
é nenhuma surpresa saber que o entusiasmo de Ratzinger, como, aliás, do próprio
Papa, por estes movimentos não conta com a participação de muita gente dentro
da Igreja, inclusive de um bom número de bispos e cardeais influentes. O
cardeal Martini, de Milão, jesuíta e professor de Sagrada Escritura, é o
adversário mais conhecido na Europa: na Igreja da América do Sul também há
figuras de proa, como os cardeais Arns e Lorscheider, do Brasil, que têm tomado
posição contra os movimentos, criticados por causa de suas posições
fundamentalistas e pela sua presença como igrejas
paralelas dentro das dioceses locais. A controvérsia que eles desencadearam já
provocou divisões no seio das paróquias, entre padres e bispos, entre bispos e
o Papa e até mesmo no próprio Vaticano, ou seja, no próprio coração da igreja
institucional. Embora o apoio do Papa tenha forçado os críticos dos movimentos
a guardar silêncio, as tensões estão aumentando em várias áreas da Igreja e
poderiam levar a cisões mais sérias, eventualmente até mesmo ao cisma.
Não
obstante, até mesmo os adversários são obrigados a reconhecer o zelo e a
eficácia destas novas estruturas. O cardeal Danneels, da Bélgica, um moderado,
assinalou que é um facto
que a maior parte das conversões de nosso tempo acontecem nesses movimentos,
enquanto as nossas estruturas clássicas parecem ficar relegadas à função de
proceder às revisões de rotina e garantir o funcionamento normal da máquina.
Será que o verdadeiro trabalho missionário na Europa não está sendo feito pelos
movimentos e grupos (pequenos ou grandes) que não pertencem às estruturas
profundas do povo de Deus, ou, em outras palavras, que não pertencem às
dioceses e paróquias?» In Gordon Urquhart, A
Armada do Papa, tradução de Irineu Guimarães, Editora Record, 2002, ISBN
978-850-106-222-2.
Cortesia de ERecord/JDACT