sábado, 3 de novembro de 2018

Nas Asas do Tempo. Diana Gabaldon. «Fica difícil ler na cama, disse, o coração começando a acelerar. Posso pensar em coisas melhores para fazer na cama, murmurou. Pode mesmo?»

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«(…) Minha janela? Que extraordinário! Não pude conter um ligeiro estremecimento e atravessei o quarto para fechar as persianas, embora fosse um pouco tarde para isso. Frank seguiu-me, ainda falando. Sim, eu mesmo pude vê- la lá debaixo. Escovava os cabelos e resmungava porque estavam arrepiados. Nesse caso, o sujeito provavelmente estava-se divertindo, disse, asperamente. Frank sacudiu a cabeça, embora sorrisse e alisasse os meus cabelos. Não, ele não estava rindo. Na verdade, ele parecia terrivelmente infeliz com alguma coisa. Não que eu tenha podido ver bem o seu rosto; foi alguma coisa na maneira como estava ali parado. Eu vim por trás dele e, quando ele não se moveu, perguntei educadamente se poderia ajudá-lo em alguma coisa. Primeiro, ele agiu como se não me tivesse ouvido, e eu achei que talvez não tivesse mesmo, com o barulho do vento, então repeti o que dissera e estendi a mão para tocar seu ombro, chamar sua atenção, sabe. Mas antes que eu pudesse tocá-lo, ele girou repentinamente nos calcanhares, passou por mim e começou a descer a rua. Parece um tanto grosseiro, mas não muito próprio de um fantasma,observei, esvaziando meu copo. Como ele era? Um sujeito grandalhão, Frank disse, franzindo a testa ao se recordar. É escocês, em trajes completos das Highlands, com a bolsa de pêlos usada pelos escoceses na frente do kilt e um lindo broche de um veado correndo prendendo o xaile xadrez. Quis perguntar- lhe onde o tinha conseguido, mas afastou-se antes que eu tivesse a oportunidade.
Dirigi-me à escrivaninha e servi outra dose de uísque. Bem, não é uma aparência muito estranha para essa região, certo? De vez em quando vejo um homem vestido assim na vila. Nããão... Frank parecia duvidar. Não, não eram as suas roupas que pareciam estranhas. Mas quando passou por mim, eu poderia jurar que ele estava suficientemente perto para esbarrar na manga do meu casaco, mas não o fez. Fiquei tão intrigado que me virei para observá-lo conforme se afastava. Ele desceu a Gereside Road, mas quase ao chegar à esquina, ele..., desapareceu. Foi quando comecei a sentir um calafrio na espinha. Talvez a sua atenção tenha sido desviada por um instante e ele simplesmente tenha mergulhado nas sombras. Há muitas árvores no fim da rua. Posso jurar que não tirei os olhos dele nem por um segundo, murmurou Frank. Ergueu os olhos subitamente.
Já sei! Lembro-me agora porque o achei tão estranho, embora não tivesse percebido isso na hora. O quê? Eu estava ficando um pouco cansada do fantasma e queria passar para questões mais interessantes, como a cama. Estava vento forte, mas as pregas, sabe, do saiote e do xaile quadriculados, elas simplesmente não se mexiam, excepto com o movimento de seus passos. Fitámo-nos. Bem, disse finalmente, isso é um pouco arrepiante. Frank deu de ombros e sorriu de repente, descartando o assunto. Ao menos, terei alguma coisa para contar ao vigário da próxima vez que o encontrar. Talvez seja um famoso fantasma local e ele poderá contar a sua história sangrenta. Olhou para o seu relógio. Mas agora, eu diria que são horas de irmos para a cama. É, sim - murmurei.
Observei-o pelo espelho, enquanto tirava a camisa e procurava um cabide. De repente, parou enquanto desabotoava a camisa. Teve muitos escoceses sob os seus cuidados, Claire?, perguntou bruscamente. No hospital de campanha ou em Pembroke? Claro, respondi, um pouco intrigada. Havia muitos Seaforth e Cameron na base militar em Amiens e, um pouco mais tarde, depois de Caen, tivemos muitos Gordon. Bons sujeitos, na maioria. Muito estóicos a respeito de tudo de um modo geral, mas terrivelmente covardes quando se tratava de injecções. Sorri, lembrando-me particularmente de um deles. Tivemos um, na verdade um sujeito muito rabugento, um gaiteiro dos Seaforth, que não suportava injecção, especialmente nas nádegas. Passava horas no mais terrível desconforto antes de deixar que alguém se aproximasse dele com uma seringa e, mesmo assim, tentava fazer-nos dar- lhe a injecção no braço, embora fosse intramuscular. Ri diante da lembrança do cabo Chisholm. Ele disse-me: se vou ficar deitado de barriga para baixo, com minha bunda de fora, quero que a garota fique em baixo de mim, não atrás de mim com uma agulha!
Frank sorriu, mas pareceu um pouco apreensivo, como sempre acontecia com as minhas histórias de guerra menos delicadas. Não se preocupe, assegurei-lhe, percebendo a sua expressão, não vou contar essa na hora do chá na sala dos professores. O sorriso arrefeceu e ele aproximou-se, parando atrás de mim, sentada à penteadeira. Beijou o topo de minha cabeça. Não se preocupe, disse. Os professores vão adorá-la, quaisquer que sejam as histórias que contar. Hum. Os seus cabelos estão com um perfume delicioso. Gosta? Em resposta, suas mãos deslizaram para a frente por cima dos meus ombros, segurando meus seios na camisola fina. Eu podia ver seu rosto acima do meu no espelho, o queixo descansando sobre a minha cabeça. Gosto de tudo em si, disse com a voz rouca. Fica linda à luz de velas. Seus olhos são como xerez no cristal e a sua pele brilha como marfim. Uma feiticeira à luz de velas, é o que você é. Talvez eu devesse desligar as lâmpadas permanentemente.
Fica difícil ler na cama, disse, o coração começando a acelerar. Posso pensar em coisas melhores para fazer na cama, murmurou. Pode mesmo?, disse, levantando-me e virando-me para passar os braços em volta de seu pescoço. Como o quê, por exemplo?
Algum tempo depois, aconchegados por trás das persianas trancadas, ergui minha cabeça dos seus ombros e disse: porque me perguntou aquilo? Se eu tive contacto com escoceses, quero dizer, deve saber que tive, há todo o tipo de homens nesses hospitais. Ele mexeu-se e deslizou a mão pelas minhas costas. Hum! Ah, por nada, na verdade. É que, quando vi aquele sujeito lá fora, ocorreu-me que pudesse ser, hesitou, apertando-me mais um pouco nos seus braços. Hã! Sabe, que pudesse ser alguém de quem cuidou, talvez..., talvez tivesse ouvido falar que estava aqui e veio ver..., algo assim. Nesse caso, eu disse, de modo prático, por que ele não entraria e pediria para me ver? Bem, a voz de Frank pareceu muito descontraída, talvez ele não quisesse dar de cara comigo». In Diana Gabaldon, Nas Asas do Tempo, Casa das Letras, Leya, 2010, 2016, ISBN 978-972-461-974-3.

Cortesia da CdasLetras/JDACT