sábado, 3 de novembro de 2018

Nas Asas do Tempo. Diana Gabaldon. «Acho que está um pouco tempestuoso para um fantasma, disse. Eles não gostam de noites calmas e enevoadas em cemitérios? Frank riu um pouco timidamente»



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«(…) Depois de passar algum tempo na sala com a sra. Baird, numa conversa amena e nada desagradável, subi para o meu quarto, para aprontar-me antes de Frank chegar. Sabia que o limite dele era de duas taças de xerez e, portanto, esperava-o de volta logo. O vento começava a soprar forte e o próprio ar do quarto estava carregado de electricidade. Passei a escova nos cabelos, fazendo os cachos estalarem com a estática e saltarem, emaranhando-se furiosamente. Meus cabelos teriam que passar sem as cem escovadelas esta noite, decidi. Com as actuais condições do tempo, iria apenas escovar os dentes. Fios de cabelo grudavam-se no meu rosto, agarrando-se teimosamente enquanto eu tentava afastá-los para trás. Nenhuma água no jarro; Frank a usara, arrumando-se antes de sair para o seu encontro com o sr. Bainbridge, e não se dera ao trabalho de enchê-lo novamente na torneira do banheiro. Peguei no frasco de L’Heure Bleu e despejei uma boa porção na palma da mão. Esfregando rapidamente as mãos antes que o perfume se evaporasse, passei-as pelos cabelos. Despejei mais um pouco na escova e penteei os cachos para trás das orelhas. Bem. Assim estava melhor, pensei, girando a cabeça de um lado para o outro para examinar os resultados no espelho manchado. A humidade dissipara a electricidade dos meus cabelos, de modo que eles agora flutuavam em ondas brilhantes e pesadas à volta do meu rosto. O álcool evaporado deixara um perfume muito agradável no ar. Frank iria gostar, pensei. L'Heure Bleu era a sua colónia favorita.
De repente o clarão de um relâmpago bem próximo, seguido imediatamente pelo estrondo de um trovão, fez com que todas as luzes se apagassem. Praguejando baixinho, comecei a tactear dentro das gavetas. Em algum lugar, eu vira velas e fósforos; a queda da energia eléctrica era uma ocorrência tão frequente nas Highlands que as velas constituíam um suprimento indispensável em todos os quartos de hotéis e hospedarias. Eu as vira até mesmo nos hotéis mais elegantes, onde eram perfumadas com madressilvas e apresentadas em castiçais de vidro fosco com pingentes brilhantes. As velas da sra. Baird eram bem mais utilitárias, velas brancas comuns, mas havia muitas delas, assim como três caixas de fósforos. Não estava inclinada a ser exigente quanto à elegância num momento como aquele. Coloquei uma vela no suporte de cerâmica azul sobre a penteadeira iluminada pelo relâmpago seguinte, depois acendi outras pelo quarto, até que todo o aposento fosse tomado por uma luminosidade suave e bruxuleante. Muito romântico, pensei, e com certa presença de espírito desliguei o interruptor, de modo que uma volta repentina da luz não estragasse o clima em algum momento inoportuno.
As velas não haviam queimado mais do que um centímetro quando a porta se abriu e Frank entrou como um furacão. Literalmente, porque a rajada de vento que o seguiu escadas acima apagou três velas. A porta fechou-se atrás dele com uma pancada que apagou mais duas velas. Esforçando-se para enxergar na escuridão repentina, passou a mão pelos cabelos desalinhados. Levantei-me e reacendi as velas, admoestando-o brandamente sobre os modos bruscos de entrar num aposento. Foi somente ao terminar e me virar para lhe perguntar se gostaria de uma bebida que vi que ele parecia um pouco pálido e perturbado. O que foi? Viu um fantasma? Bem, sabe, ele disse devagar, não tenho certeza se não vi. -Distraidamente, ele pegou minha escova e ergueu-a para arrumar os seus cabelos. Quando a fragrância repentina de L'Heure Bleu atingiu as suas narinas, franziu o nariz e colocou-a de volta sobre a penteadeira, voltando a atenção para o pente que carregava no bolso. Olhei pela janela, onde os olmos se agitavam de um lado para o outro como manguais. Uma persiana aberta batia em algum lugar do outro lado da casa e ocorreu-me que talvez devêssemos fechar as nossas, embora o alvoroço lá fora fosse interessante de observar. Acho que está um pouco tempestuoso para um fantasma, disse. Eles não gostam de noites calmas e enevoadas em cemitérios? Frank riu um pouco timidamente.
Bem, provavelmente foram apenas as histórias de Bainbridge e um pouco de xerez a mais do que eu deveria ter tomado. Nada de mais. Agora eu estava curiosa. O que viu exactamente?, perguntei, sentando-me no banquinho da penteadeira. Indiquei a garrafa de uísque erguendo uma das sobrancelhas e Frank imediatamente foi servir duas bebidas. Bem, na verdade, apenas um homem… Parado na rua lá fora. O quê? Do lado de fora desta casa?, perguntei com uma risada. Então, deve ter sido um fantasma; não posso imaginar ninguém parado por aí em uma noite como essa. Frank inclinou o jarro de água sobre seu copo, depois olhou acusadoramente para mim quando não saiu nenhuma água. Não olhe para mim, disse. Usou toda a água. Mas eu prefiro o uísque puro mesmo. Tomei um gole para demonstrar. Frank pareceu inclinado a dar um pulo no lavatório para pegar água, mas abandonou a ideia e continuou a sua história, tomando pequenos goles cautelosamente, como se o seu copo contivesse ácido sulfúrico ao invés do melhor uísque Glenfiddich de puro malte. Sim, ele estava na borda do jardim, deste lado, parado junto à cerca. Eu pensei, hesitou, olhando dentro do copo, achei que ele estava a olhar para a sua janela». In Diana Gabaldon, Nas Asas do Tempo, Casa das Letras, Leya, 2010, 2016, ISBN 978-972-461-974-3.

Cortesia da CdasLetras/JDACT