sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

As Palavras e as Coisas. Michel Foucault. «O espaço das analogias é, no fundo, um espaço de irradiação. Por todos os lados, o homem é por ele envolvido; mas esse mesmo homem, inversamente, transmite as semelhanças que recebe do mundo»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Tanto essa reversibilidade como esta polivalência conferem à analogia um campo universal de aplicação. Por ela, todas as figuras do mundo podem aproximar-se. Existe, entretanto, nesse espaço sulcado em todas as direcções, um ponto privilegiado: é saturado de analogias (cada uma pode aí encontrar um de seus pontos de apoio) e, passando por ele, as relações se invertem sem se alterar. Esse ponto é o homem; ele está em proporção com o céu, assim como com os animais e as plantas, assim como com a terra, os metais, as estalactites ou as tempestades. Erguido entre as faces do mundo, tem relação com o firmamento (seu rosto está para seu corpo como a face do céu está para o éter; seu pulso bate-lhe nas veias como os astros circulam segundo as suas vias próprias; as sete aberturas formam no seu rosto o que são os sete planetas do céu); todas essas relações, porém, ele as desloca e as reencontramos, similares, na analogia do animal humano com a terra que habita: sua carne é uma gleba, seus ossos, rochedos, suas veias, grandes rios; sua bexiga é o mar e seus sete membros principais, os sete metais que se escondem no fundo das minas. O corpo do homem é sempre a metade possível de um atlas universal. Sabe-se como Pierre Belon traçou, até nos detalhes, a primeira tábua comparada do esqueleto humano com o dos pássaros: ali se vê a ponta da asa chamada apêndice, que está em proporção com a asa, com o polegar, com a mão; a extremidade da ponta da asa, que é como nossos dedos (...); o osso, tido como pernas para os pássaros, correspondendo ao nosso calcanhar; assim como temos quatro dedos pequenos nos pés, assim os pássaros têm quatro dedos, dos quais o de trás tem proporção semelhante à do dedo grande do nosso pé. Tanta precisão só constitui anatomia comparada para um olhar munido dos conhecimentos do século XIX.
Ocorre que o crivo pelo qual deixamos chegar ao nosso saber as figuras da semelhança recobre nesse ponto (e quase somente nesse ponto) aquele que o saber do século XVI dispusera sobre as coisas. Mas a descrição de Belon, a bem dizer, só procede da positividade que, na sua época, a tornou possível. Ela não é mais racional nem mais científica que certa observação de Aldrovandi, quando ele compara as partes inferiores do homem aos lugares infectos do mundo, ao Inferno, às suas trevas, aos condenados que são como excrementos do Universo; ela pertence à mesma cosmografia analógica que a comparação, clássica na época de Crollius, entre a apoplexia e a tempestade: a borrasca começa quando o ar se torna pesado e se agita, a crise, no momento em que os pensamentos se tornam pesados, inquietos; depois as nuvens se acumulam, o ventre incha, o trovão estronda e a bexiga se rompe; os relâmpagos fulminam enquanto os olhos brilham com um fulgor terrível, a chuva cai, a boca espuma, o raio deflagra enquanto os espíritos fazem rebentar a pele; mas eis que o tempo se torna claro e a razão se restabelece no doente. O espaço das analogias é, no fundo, um espaço de irradiação. Por todos os lados, o homem é por ele envolvido; mas esse mesmo homem, inversamente, transmite as semelhanças que recebe do mundo. Ele é o grande fulcro das proporções, o centro onde as relações vêm se apoiar e donde são novamente reflectidas. Enfim, a quarta forma da semelhança é assegurada pelo jogo das simpatias.
Nela nenhum caminho é de antemão determinado, nenhuma distância é suposta, nenhum encadeamento prescrito. A simpatia actua em estado livre nas profundezas do mundo. Num instante percorre os espaços mais vastos: do planeta ao homem que ela rege, a simpatia desaba de longe como o raio; ela pode nascer, ao contrário, de um só contacto, como essas rosas fúnebres que servirão num funeral, que, pela simples vizinhança com a morte, tornam triste e agonizante todas as pessoas que respiraram o seu perfume. Mas é tal seu poder, que ela não se contenta em brotar de um único contacto e em percorrer os espaços; suscita o movimento das coisas no mundo e provoca a aproximação das mais distantes. Ela é princípio de mobilidade: atrai o que é pesado para o peso do solo e o que é leve para o éter sem peso; impele as raízes para a água e faz girar com a curva do sol a grande flor amarela do girassol.
Mais ainda, atraindo as coisas umas às outras por um movimento exterior e visível, suscita em segredo um movimento interior, um deslocamento de qualidades que se substituem mutuamente: o fogo, porque quente e leve, se eleva no ar, para o qual as chamas infatigavelmente se erguem; perde, porém, sua própria secura (que o aparentava à terra) e adquire assim certa humidade (que o liga à água e ao ar); desaparece então em ligeiro vapor, em fumaça azul, em nuvem: tornou-se ar. A simpatia é uma instância do Mesmo tão forte e tão contumaz que não se contenta em ser uma das formas do semelhante; tem o perigoso poder de assimilar, de tornar as coisas idênticas umas às outras, de misturá-las, de fazê-las desaparecer na sua individualidade, de torná-las, pois, estranhas ao que eram. A simpatia transforma. Altera, mas na direcção do idêntico, de sorte que, se seu poder não fosse contrabalançado, o mundo se reduziria a um ponto, a uma massa homogénea, à morna figura do Mesmo: todas as suas partes se sustentariam e se comunicariam entre si sem ruptura nem distância, como elos de metal suspensos por simpatia à atracção de um único ímã». In Michel Foucault, As Palavras e as Coisas, 1966, Livraria Martins Fontes Editora, 1981, 2000, ISBN 853-360-997-3.

Cortesia de LMFontesE/JDACT