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«(…) Lugar de destaque para a
irmã bastarda dona Beatriz, casada com o duque de Cardona. Ainda perto do
coração deve estar dona Vataça Láscaris, filha do conde de Ventigmilia e
de dona Irene Lascarina. Têm sido criadas juntas, desde que a dama grega de Niceia
veio com os filhos para voltar a casar na Catalunha. Dona Prisca é uma fidalga
aragonesa, já noiva de um cavaleiro português. Está indicada como camareira-mor
de dona Isabel. Depois vem a colaça, talvez aia principal, a marquesa
Rodrigues, a quem cabe escolher damas e donzelas portuguesas para criadas e
camareiras. Diferente é minha tia. De linhagem inferior, remete-se a segundo
plano, como lhe compete, a segurar com mãos ambas a orla do vestido da noiva.
Fazem agora a Carrer dos Condes em sentido inverso até ao palácio, onde a boda começa
a ser servida no Salão dos Arcos Românicos.
Ainda envolvido por um deslumbre
novo, a repartir o tempo pelas salas e pela copa, não me escapa quando os reis
de Aragão e Catalunha sobem com a filha. Os tempos são conturbados, as
oportunidades para assuntos de família têm escasseado. Talvez esta conversa
viesse sendo adiada desde que se espalharam os rumores da guerra civil em
Castela. Ficam uma meia hora no andar de cima, depois acabam por descer
sozinhos. Dona Isabel deve ter invocado necessidade de repouso, um tempo para
meditar na nova condição.
Daí
a pouco sou directamente abordado por um escudeiro. Traz ordens de minha tia
para eu subir um instante. Nessa altura repito o percurso de horas antes, agora
senhor de mim. Apto a dosear a força dos nós dos dedos, pronto para bater na grossa
porta, detenho-me já de braço erguido e punho fechado, quando ouço o chamamento
que vem do interior. Soledad pressente tudo, até as patas silenciosas de um
gato. Deve ter ouvido o som das minhas calçaduras de couro na pedra, porque me
convida a entrar com voz de repente adocicada: não tenhas medo, vem…
E já quando empurro a porta e meu rosto aflora, no limar: estás a ouvir…? Faz a vénia à nossa rainha. Depois para dona Isabel. É o tal meu sobrinho, senhora, filho de
minha irmã Constança que Deus levou há anos. Não é tão tolo como parece… Sabe
discernir, tem qualidades para levar uma mensagem sem lhe devassar o conteúdo. Esta
alusão dá a medida das apreensões de minha tia, a ânsia de obter pronta resposta
ao pedido de Ángel. Mas se dona Isabel entende o apelo velado, finge nem sequer
notar, movida pelo bom senso de não tomar atitude enquanto não falar com dom Dinis.
Acolhe-me com doçura. Deixa-o falar,
Soledad. E na minha direcção uns passos. Chega mais perto de mim. Como te chamas? Javier Cardeña, senhora minha.
Gostarias de servir os reis, meus pais e senhores, em Zaragoza? Seria subida
honra, se algum préstimo tivesse, mas como vos dirá minha tia, nada mais sei
fazer do que carregar fardos, levar e trazer mensagens. Acontece com todos…
Antes de aturada vontade, nada sabemos que valha. No paço não faltam jardins,
hortos para mondar e regar, campos de pão e silos, cavalariças e bestas. Aqui
meu coração dá um salto…Os cavalos, tratar deles…, meu sonho desde criança.
Ajoelho diante daquela que dizem ser a formosa dona Isabel, mais nova do que eu
três anos, menos bela do que as vozes populares fazem crer. Ao mandar que me levante
encara-me mais de perto, e nesse momento reparo no ligeiro desvio do olho
esquerdo rumo ao centro, já falado por meus tios. Mas tem um sorriso tão doce
que se torna formosa como quer o povo, sem distância de realeza ou ponta de altivez,
só firmeza no contacto. E nem me embaraço quando pronto lhe respondo. Meu fito é poder tratar cavalos, melhor
ainda se puder montar um de bom porte, algum dia. Se me for concedida tal
mercê, será mais do que sonhei, senhora dona Isabel». In
Maria Helena Ventura, Onde Vais Isabel, Saída de Emergência, 2008, ISBN
978-989-637-034-3.
Cortesia
de SdeEmergência/JDACT