segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Onde Vais Isabel? Maria Helena Ventura. «Ajoelho diante daquela que dizem ser a formosa dona Isabel, mais nova do que eu três anos, menos bela do que as vozes populares fazem crer…»

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«(…) Lugar de destaque para a irmã bastarda dona Beatriz, casada com o duque de Cardona. Ainda perto do coração deve estar dona Vataça Láscaris, filha do conde de Ventigmilia e de dona Irene Lascarina. Têm sido criadas juntas, desde que a dama grega de Niceia veio com os filhos para voltar a casar na Catalunha. Dona Prisca é uma fidalga aragonesa, já noiva de um cavaleiro português. Está indicada como camareira-mor de dona Isabel. Depois vem a colaça, talvez aia principal, a marquesa Rodrigues, a quem cabe escolher damas e donzelas portuguesas para criadas e camareiras. Diferente é minha tia. De linhagem inferior, remete-se a segundo plano, como lhe compete, a segurar com mãos ambas a orla do vestido da noiva. Fazem agora a Carrer dos Condes em sentido inverso até ao palácio, onde a boda começa a ser servida no Salão dos Arcos Românicos.
Ainda envolvido por um deslumbre novo, a repartir o tempo pelas salas e pela copa, não me escapa quando os reis de Aragão e Catalunha sobem com a filha. Os tempos são conturbados, as oportunidades para assuntos de família têm escasseado. Talvez esta conversa viesse sendo adiada desde que se espalharam os rumores da guerra civil em Castela. Ficam uma meia hora no andar de cima, depois acabam por descer sozinhos. Dona Isabel deve ter invocado necessidade de repouso, um tempo para meditar na nova condição.
Daí a pouco sou directamente abordado por um escudeiro. Traz ordens de minha tia para eu subir um instante. Nessa altura repito o percurso de horas antes, agora senhor de mim. Apto a dosear a força dos nós dos dedos, pronto para bater na grossa porta, detenho-me já de braço erguido e punho fechado, quando ouço o chamamento que vem do interior. Soledad pressente tudo, até as patas silenciosas de um gato. Deve ter ouvido o som das minhas calçaduras de couro na pedra, porque me convida a entrar com voz de repente adocicada: não tenhas medo, vem… E já quando empurro a porta e meu rosto aflora, no limar: estás a ouvir…? Faz a vénia à nossa rainha. Depois para dona Isabel. É o tal meu sobrinho, senhora, filho de minha irmã Constança que Deus levou há anos. Não é tão tolo como parece… Sabe discernir, tem qualidades para levar uma mensagem sem lhe devassar o conteúdo. Esta alusão dá a medida das apreensões de minha tia, a ânsia de obter pronta resposta ao pedido de Ángel. Mas se dona Isabel entende o apelo velado, finge nem sequer notar, movida pelo bom senso de não tomar atitude enquanto não falar com dom Dinis. Acolhe-me com doçura. Deixa-o falar, Soledad. E na minha direcção uns passos. Chega mais perto de mim. Como te chamas? Javier Cardeña, senhora minha. Gostarias de servir os reis, meus pais e senhores, em Zaragoza? Seria subida honra, se algum préstimo tivesse, mas como vos dirá minha tia, nada mais sei fazer do que carregar fardos, levar e trazer mensagens. Acontece com todos… Antes de aturada vontade, nada sabemos que valha. No paço não faltam jardins, hortos para mondar e regar, campos de pão e silos, cavalariças e bestas. Aqui meu coração dá um salto…Os cavalos, tratar deles…, meu sonho desde criança. Ajoelho diante daquela que dizem ser a formosa dona Isabel, mais nova do que eu três anos, menos bela do que as vozes populares fazem crer. Ao mandar que me levante encara-me mais de perto, e nesse momento reparo no ligeiro desvio do olho esquerdo rumo ao centro, já falado por meus tios. Mas tem um sorriso tão doce que se torna formosa como quer o povo, sem distância de realeza ou ponta de altivez, só firmeza no contacto. E nem me embaraço quando pronto lhe respondo. Meu fito é poder tratar cavalos, melhor ainda se puder montar um de bom porte, algum dia. Se me for concedida tal mercê, será mais do que sonhei, senhora dona Isabel». In Maria Helena Ventura, Onde Vais Isabel, Saída de Emergência, 2008, ISBN 978-989-637-034-3.
                                                                                               
Cortesia de SdeEmergência/JDACT