sexta-feira, 12 de julho de 2024

Fernando Campos. Psiché. «Uma caixa de fósforos, se faz favor. O gesto mecânico do empregado, olhar distante, rosto enjoado, passando o pano sórdido sobre o mármore do balcão…»

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A memória do esquecimento

«Levanto‑me. Vou comprar qualquer coisa e depois venho olhando de frente, digo, deixando António a puxar de um cigarro. Caminho até ao bar. Uma caixa de fósforos, se faz favor. O gesto mecânico do empregado, olhar distante, rosto enjoado, passando o pano sórdido sobre o mármore do balcão, os ombros e a cabeça recortados na superfície polida do grande espelho que corre a todo o comprimento da parede. Procuro nos retalhos de imagens, entre prateleiras de garrafas, reconstituir o cenário atrás de mim, enquanto pago os fósforos. No embaciamento daqueles estilhaços de prata velha a custo reconheço António sentado à mesa e, três filas além, a mancha de um vestido claro, uma vaga sombra de mulher que se ergueu e se afasta. Volto‑me para regressar. E este voltar‑me... Como o virar de página do tempo! Trinta anos transcorridos!... Aquele meu voltar‑me para não encontrar ninguém! Apenas uma mesa vazia. No pires, junto à chávena, um guardanapo de papel amarrotado, uma ponta de cigarro esmagada... Perdi para sempre a ocasião de alguma vez me encontrar com ela? De saber quem era?... Os anos desataram a transformar em húmus e a diluir em éter, numa vertigem, aqueles que foram protagonistas ou meras testemunhas desses insólitos acontecimentos. Caíram na voragem novos e velhos: Silva Lisboa, Albertina, outros... Os que ficaram, ainda quando aqui e ali roçaram por eles vestígios vivos desse passado, fecharam‑se numa cómoda ausência de curiosidade ou uma estudada distanciação e apatia. Como que acabaram por esquecer.

Nem esquecer‑me nem lembrar‑me podia eu. Factos que mal conhecera fragmentariamente esbateram‑se em nebuloso fundo de outras preocupações que vieram relevar‑se longos anos, em nitidez e luz, na ribalta da vida. Andanças de errante saltimbanco do ofício de professor... Terras distantes escondidas nas voltas das estradas, no tramontar das serras.... Muralhas tisnadas dos séculos e dos sonhos, vigiando a veiga expectante e úbere do vale imenso... Perfumes e cores exalando‑se do seio do oceano na ilha perdida como nenúfar que floriu no cume de um vulcão extinto... Banho de brancura luminosa, olhos magoados da claridade do céu e da cal de paredes e açoteias mouriscas... Maresia ribeirinha de gaivotas e traineiras ondulando no porto fenício... Até vir aproar na cidade de Ulisses a lustrar‑me de rosa... Que me chamou então de novo, decorrido tanto tempo, a atenção para o mistério?...

Toma!‑ disse‑me Fernanda um dia ajoelhada no chão à boca da antiga mala abaulada, enquanto me ia entregando livros, embrulhos, velhas fotografias. "Esta mala! Viajou connosco tantos anos por todo o lado!...E parava, cansada, com as mãos no regaço, o olhar tresmalhado no passado. De súbito acordava e tornava a mexer na papelada. Estes são os álbuns dele. Que canseira miúda e aturada! As mãos dele! Estou a vê‑las, habilidosas, a recortar, a colar... Que paciência! Coligidos quase dia a dia, recortes de jornais, postais ilustrados, recordações dos teatros em que actuou, de amigos, artistas, personalidades que conheceu... O desnovelar da vida!... Tudo passou!» In Fernando Campos, Psiché, Difel, Lisboa, 1987, Dl nº 83973.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, Conhecimento, Educação, Literatura, A Arte,