terça-feira, 2 de julho de 2024

As Cruzadas vistas pelos Árabes. Amin Maalouf. «Naquele ano, começaram a chegar informações sucessivas sobre a aparição de tropas de franj vindas do mar de Mármara em grande multidão. As pessoas amedrontaram-se»

jdact e wikipedia

Agosto de 1099. Bagdade

«(…) Em Bagdade, a decepção dos refugiados será tão grande quanto as suas esperanças. Antes de encarregar seis altos dignitários da corte para que efectuassem uma investigação sobre esses acontecimentos desagradáveis, o califa Mustazhit-billah expressa a sua simpatia pela causa. E preciso dizer que não se ouvira mais falar nesse comité de sabios? O saque a Jerusalém, ponto de partida de uma hostilidade milenar entre o Islão e o Ocidente, não provoca, na hora, nenhuma reacção. Foi preciso esperar cerca de meio século antes que o Oriente árabe se mobilize perante o invasor, e que a chamada ao jihad lancada pelo cádi de Damasco à tenda do califa seja celebrada como o primeiro acto solene de resistência. No inicio da invasão, poucos árabes medem imediatamente, como al-Harawi, a amplitude da ameaça vinda do Oeste. Alguns adaptam-se até rápido demais à nova situação. A maioria só procura sobreviver, amargurada e resignada. Alguns colocam-se como observadores mais ou menos lúcidos, tentando compreender esses acontecimentos tão imprevistos quanto novos. O mais cativante deles é o cronista de Damasco, Ibn al-Qalanissi, jovem letrado de uma família de notáveis. Testemunho ocular, ele tem 23 anos, em 1096, quando os franj chegam ao Oriente e se aplica em consignar por escrito os acontecimentos que chegam ao seu conhecimento. A sua crónica narra fielmente, sem envolvimento excessivo, a progressão dos invasores, tal como é vista na sua cidade. Para ele, tudo começou nesses dias de angústia em que chegam a Damasco os primeiros rumores...

 

A Invasão. 1096-1100

Olhem para os franj! Vejam com que fúria lutam por sua religião, enquanto nós, os muçulmanos, não demonstramos ardor algum em travar a Guerra Santa. In Saladino

Naquele ano, começaram a chegar informações sucessivas sobre a aparição de tropas de franj vindas do mar de Mármara em grande multidão. As pessoas amedrontaram-se. Essas noticias foram confirmadas pelo rei Kilij Arslan, cujo território era o mais próximo desses franj. O rei Kilij Arslan de quem fala aqui Ibn al-Qalanissi ainda não tem 17 anos quando os invasores chegam. Como primeiro dirigente muçulmano a ser informado da sua chegada, esse jovem sultão turco de olhos levemente puxados será o primeiro a infligir-lhes uma derrota e posteriormente o primeiro a ser vencido pelos seus temíveis cavaleiros. Desde Julho de 1096, Kilij Arslan sabe que uma imensa multidão de franj está a caminho de Constantinopla. Imediatamente, ele teme o pior. É claro que ele não tem ideia alguma dos objectivos reais perseguidos por essa gente, mas a vinda deles ao Oriente bastava para que se atemorizasse. O sultanato que ele governa abrange uma grande parte da Ásia Menor, um território que os turcos acabam apenas de arrancar aos gregos. Na verdade, o pai de Kilij Arslan, Suleiman, foi o primeiro a apossar-se dessa terra que se chamaria, muitos séculos mais tarde, Turquia. Em Niceia, capital desse jovem Estado muçulmano, as igrejas bizantinas continuam mais numerosas do que as mesquitas. Se a guarnição da cidade é formada por cavaleiros turcos, a maioria da população é grega, e Kilij Arslan não tem ilusões quanto aos verdadeiros sentimentos de seus súbditos, para os quais ele será sempre um chefe de bando bárbaro. O único soberano que eles reconhecem, aquele cujo nome é murmurado em todas as suas orações, e o basileu Aléxis Comneno, imperador dos romanos. Na realidade, Aléxis seria antes o imperador dos gregos, os quais se proclamam herdeiros do Imperio romano. Essa qualidade lhes é, aliás, reconhecida pelos árabes, que, no século XI como no século XX, designam os gregos pelo termo rum, romanos. O domínio conquistado pelo pai de Kilij Arslan em detrimento do Imperio grego é chamado, inclusive, de sultanato dos rum.

Na época, Aléxis e uma das figuras mais prestigiosas do Oriente. Esse quinquagenário de baixa estatura, olhos cintilantes de malícia, de barba bem cuidada, modos elegantes, sempre paramentado de ouro e ricas roupagens azuis, exerce um verdadeiro fascínio sobre Kilij Arslan. É ele quem reina sobre Constantinopla, a fabulosa Bizâncio, situada a menos de três dias de caminhada de Niceia. Uma proximidade que provoca no jovem sultão sentimentos mistos. Como todos os guerreiros nómadas, ele sonha com conquista e pilhagem. Não lhe desagrada sentir as riquezas legendárias de Bizâncio ao alcance da mão, mas ao mesmo tempo sente-se ameaçado: sabe que Aléxis nunca perdeu as esperanças de recuperar Niceia, não somente porque a cidade sempre foi grega, mas principalmente porque a presença de guerreiros turcos, a tão curta distância de Constantinopla, constitui um perigo permanente para a segurança do Imperio». In Amin Maalouf, As Cruzadas vistas pelos Árabes, 1983, Colecção História Narrativa, nº 38, Reimpressão, Edições 70, Ensaio, 2016, ISBN-978-972-441-756-1.

Cortesia de Edições70/JDACT

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