domingo, 10 de julho de 2022

O Fogo e a Rosa, António Vieira. Seomara Veiga Ferreira, «Podia aplicar-se o preceito de Plínio a essa trabalhadora incansável, Nulla dies sine linea que, apesar de se dirigir ao trabalho de um pintor…»

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A Viagem Imóvel

«A cidade acordou fria, coroada por um sol pálido, e o rio tacteava as suas praias como um longo e agitado cordão de estanho onde ondas minúsculas, debruadas a branco, estremeciam o seu corpo, afagadas pela brisa da manhã. Bento Castro, que nunca estivera em Lisboa, achou-a bela, colorida, ruidosa e feliz. Apesar do Inverno, do Janeiro que chegava quase ao fim, a multidão era imensa e variada, tal como os veículos e animais de carga que sulcavam as ruas. Coches, liteiras, seges, cavalgaduras juntavam-se nas esquinas e grupos de gente gritavam, gesticulavam e percorriam a Rua dos Ourives da Prata, que, dizia-se, sofrera, como outras artérias da urbe, obras de melhoramento havia pouco tempo. O visitante experimentava uma comoção sincera, quase sufocante. Se não fossem os azares do destino, teria visto pela primeira vez a luz em Portugal, que conhecia apenas das entusiásticas descrições dos viajantes rendidos à beleza da sua capital bem como das cartas geográficas que os geógrafos publicavam e que percorriam o mundo. Talvez nas livrarias estivessem à venda os seus livros, como as obras do seu pai, o insigne médico Rodrigo Castro, mas que tinham sido impressas em Hamburgo, onde Bento nascera, e em Amsterdão, onde em breve sairia da impressora a sua Apologia dos Médicos Portugueses.

Visualizou o rosto severo do pai, morto meio século antes, o pai que nascera em Lisboa, aí exercera o seu mester e até 1588 fora médico da armada espanhola, e enterrado na Alemanha. Enquanto recordava o Mercúrio Português, que lera em Roma, havia uns bons quinze anos, com a descrição dos grandes trabalhos de alargamento e restauro das ruas de Lisboa, tacteou os largos bolsos pregados de botões dourados da casaca e, depois, a bolsa de couro forrada a veludo, que trazia junto à pele, e onde se achava a carta da Rainha, de Sua Majestade a incomparável, inteligente e voluntariosa Rainha Cristina Alexandra por quem nutria uma afeição tão profunda que poderia sugerir nos incautos o fulgor ígneo de uma avassaladora labareda de amor. Conhecia-a melhor que ninguém porque era o seu físico havia muitos anos. Como qualquer Hipócrates talentoso e afeiçoado, conhecia-lhe o vigoroso corpo de mulher habituada aos exercícios físicos - andava a pé milhas e chegava a cavalgar horas seguidas por brenhas ou pelas vastas florestas da sua terra, da Alemanha e da França, e auscultava-lhe, melhor que qualquer outro dos seus colegas anteriores, a alma, aquela alma que continha um universo de sabedoria, emoções e filosofia da ciência política. Admirava-a, adorava-a. Teria, se lho pedissem, morrido por ela.

Já a Rainha habitava Roma havia precisamente dez anos quando o jornal português lá chegara. Aí arribavam muitos livros também provenientes de Portugal e Espanha, levados na bagagem dos mercadores, refugiados, emigrantes fugitivos dos rigores da justiça, da fé ou da intolerância. A Rainha possuía uma vasta e rica biblioteca com mais de sete mil obras e dois mil manuscritos. Tudo guardava, mandava catalogar e arrumar e passava horas a ler ou a escrever, desde dissertações filosóficas, às memórias, cartas, textos sobre alquimia e até óperas. Era uma grande e talentosa mulher, imensamente culta, arrojada, que não escondia a sua paixão por Maquiavel, cujo Príncipe anotara, estudava a Antiguidade, escrevia sobre Alexandre Magno, Ciro e César, enchia os seus trabalhos com frequentes alusões aos clássicos gregos e latinos, que conhecia de cor. Bento sorriu-se. Revia o rosto divertido de Cristina, agora com cinquenta e cinco anos, a referir-se ao grande escritor latino Cícero: Cícero foi o único cobarde capaz de criar grandes coisas. O que era uma profunda verdade. Mas ela também dizia os imbecis são mais perigosos que os maus. Também essa máxima constituía outra grande verdade já que a estupidez gera a ignorância e esta é a mãe de todos os vícios.

Podia aplicar-se o preceito de Plínio a essa trabalhadora incansável, Nulla dies sine linea que, apesar de se dirigir ao trabalho de um pintor, poderá ser a divisa de todos os escritores e pensadores que fazem da sua vida também uma obra de arte. Bento Castro. Bento. Era o seu nome português. Castro como o pai fugido à Inquisição (maldita) em 1594. Instalou-se em Hamburgo, mudara de nome, reconvertera-se ao judaísmo com o auxílio de outro grande físico marrano, também português, que lhe dera alojamento, dinheiro e amizade: Samuel Coen, conhecido nos ficheiros do Santo Ofício (maldito) como Henrique Rodrigues. Bento e o irmão André tinham seguido a carreira do pai. Baruch Nehemiah, como agora era conhecido, estava em Roma na corte de Cristina. Às vezes usara um pseudónimo para publicar as suas obras, Philoteus Castellus. O irmão era então médico do Rei da Dinamarca e passara a chamar-se Daniel. Não o via havia muitos anos. Talvez até já tivesse morrido. Portanto, tal como o pai o fora do Conde de Hesse e do Bispo de Bremen, eles também, após os estudos em Pádua, tinham ascendido a físicos-mores, mas da realeza». In Seomara Veiga Ferreira, O Fogo e a Rosa, António Vieira, 2002, Grandes Narrativas, Editorial Presença, ISBN 978-972-232-873-9.

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