A Viagem Imóvel
«A
cidade acordou fria, coroada por um sol pálido, e o rio tacteava as suas praias
como um longo e agitado cordão de estanho onde ondas minúsculas, debruadas a
branco, estremeciam o seu corpo, afagadas pela brisa da manhã. Bento Castro,
que nunca estivera em Lisboa, achou-a bela, colorida, ruidosa e feliz. Apesar
do Inverno, do Janeiro que chegava quase ao fim, a multidão era imensa e
variada, tal como os veículos e animais de carga que sulcavam as ruas. Coches,
liteiras, seges, cavalgaduras juntavam-se nas esquinas e grupos de gente
gritavam, gesticulavam e percorriam a Rua dos Ourives da Prata, que, dizia-se,
sofrera, como outras artérias da urbe, obras de melhoramento havia pouco tempo.
O visitante experimentava uma comoção sincera, quase sufocante. Se não fossem
os azares do destino, teria visto pela primeira vez a luz em Portugal, que
conhecia apenas das entusiásticas descrições dos viajantes rendidos à beleza da
sua capital bem como das cartas geográficas que os geógrafos publicavam e que
percorriam o mundo. Talvez nas livrarias estivessem à venda os seus livros,
como as obras do seu pai, o insigne médico Rodrigo Castro, mas que tinham sido
impressas em Hamburgo, onde Bento nascera, e em Amsterdão, onde em breve sairia
da impressora a sua Apologia dos Médicos Portugueses.
Visualizou
o rosto severo do pai, morto meio século antes, o pai que nascera em Lisboa, aí
exercera o seu mester e até 1588 fora médico da armada espanhola, e enterrado
na Alemanha. Enquanto recordava o Mercúrio Português, que lera em Roma, havia
uns bons quinze anos, com a descrição dos grandes trabalhos de alargamento e
restauro das ruas de Lisboa, tacteou os largos bolsos pregados de botões
dourados da casaca e, depois, a bolsa de couro forrada a veludo, que trazia
junto à pele, e onde se achava a carta da Rainha, de Sua Majestade a
incomparável, inteligente e voluntariosa Rainha Cristina Alexandra por quem
nutria uma afeição tão profunda que poderia sugerir nos incautos o fulgor ígneo
de uma avassaladora labareda de amor. Conhecia-a melhor que ninguém porque era
o seu físico havia muitos anos. Como qualquer Hipócrates talentoso e afeiçoado,
conhecia-lhe o vigoroso corpo de mulher habituada aos exercícios físicos -
andava a pé milhas e chegava a cavalgar horas seguidas por brenhas ou pelas
vastas florestas da sua terra, da Alemanha e da França, e auscultava-lhe,
melhor que qualquer outro dos seus colegas anteriores, a alma, aquela alma que
continha um universo de sabedoria, emoções e filosofia da ciência política.
Admirava-a, adorava-a. Teria, se lho pedissem, morrido por ela.
Já
a Rainha habitava Roma havia precisamente dez anos quando o jornal português lá
chegara. Aí arribavam muitos livros também provenientes de Portugal e Espanha,
levados na bagagem dos mercadores, refugiados, emigrantes fugitivos dos rigores
da justiça, da fé ou da intolerância. A Rainha possuía uma vasta e rica
biblioteca com mais de sete mil obras e dois mil manuscritos. Tudo guardava,
mandava catalogar e arrumar e passava horas a ler ou a escrever, desde
dissertações filosóficas, às memórias, cartas, textos sobre alquimia e até
óperas. Era uma grande e talentosa mulher, imensamente culta, arrojada, que não
escondia a sua paixão por Maquiavel, cujo Príncipe anotara, estudava a
Antiguidade, escrevia sobre Alexandre Magno, Ciro e César, enchia os seus
trabalhos com frequentes alusões aos clássicos gregos e latinos, que conhecia
de cor. Bento sorriu-se. Revia o rosto divertido de Cristina, agora com
cinquenta e cinco anos, a referir-se ao grande escritor latino Cícero: Cícero
foi o único cobarde capaz de criar grandes coisas. O que era uma profunda
verdade. Mas ela também dizia os imbecis são mais perigosos que os maus. Também
essa máxima constituía outra grande verdade já que a estupidez gera a
ignorância e esta é a mãe de todos os vícios.
Podia
aplicar-se o preceito de Plínio a essa trabalhadora incansável, Nulla dies
sine linea que, apesar de se dirigir ao trabalho de um pintor, poderá ser a
divisa de todos os escritores e pensadores que fazem da sua vida também uma
obra de arte. Bento Castro. Bento. Era o seu nome português. Castro como o pai
fugido à Inquisição (maldita) em 1594.
Instalou-se em Hamburgo, mudara de nome, reconvertera-se ao judaísmo com o
auxílio de outro grande físico marrano, também português, que lhe dera
alojamento, dinheiro e amizade: Samuel Coen, conhecido nos ficheiros do Santo
Ofício (maldito) como Henrique Rodrigues. Bento e o irmão André tinham seguido
a carreira do pai. Baruch Nehemiah, como agora era conhecido, estava em Roma na
corte de Cristina. Às vezes usara um pseudónimo para publicar as suas obras, Philoteus
Castellus. O irmão era então médico do Rei da Dinamarca e passara a
chamar-se Daniel. Não o via havia muitos anos. Talvez até já tivesse morrido.
Portanto, tal como o pai o fora do Conde de Hesse e do Bispo de Bremen, eles
também, após os estudos em Pádua, tinham ascendido a físicos-mores, mas da
realeza». In Seomara Veiga Ferreira, O Fogo e a Rosa, António Vieira, 2002, Grandes
Narrativas, Editorial Presença, ISBN 978-972-232-873-9.
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