sábado, 2 de julho de 2022

A Musa de Camões. A Musa de Camões. «Sua Senhoria também se esqueceu deles, em busca da concentração que tarda em chegar. Não é a piedosa postura das imagens que lhe prende a atenção…»

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Madrugada. Os Pássaros da Bonança

«(…) Dona Paula vai até à porta que dá para a capela certificar-se de estarem sós, com o pretexto de ver se Sua Senhoria ordena alguma coisa. Começa por intriga-la a diferente concentração que lhe nota, a rezar de cabeça meio levantada ligeiramente inclinada para a esquerda, como se quisesse dar por tudo o que se passa à volta, mas entende que é melhor não lhe interromper as orações. Torna à sacristia, confiante, tomando o lugar no assento. Frei António arranjou entretanto o seu, um caixote virado ao contrário que experimenta, divertido. Comentam agora a célebre carta de dona Luísa Sigea ao papa Paulo III, sobre as regras da boa conversação, o poema Sintra, os elogios à Senhora Infanta, o agrado que deu tanto ao Santo Padre como a toda a corte pelo conteúdo, pela elegante fluência da escrita. Divergem ainda sobre outros assuntos, a conversa animada a esquecer o correr do tempo.

Frei António partilha alegremente a cultura que vem adquirindo, sabe dosear a informação. Cada interlocutor é um universo de formas de expressão, um cofre de intenções, e ele aprendeu a saber transmitir o equilíbrio entre o que espera cada um e o que lhe é devido. A uma dama como dona Paula, à mui nobre Infanta dona Maria de Portugal, pode abrir o coração sem medo. Mas ainda que muito tenha ouvido a quem o ensina, e tenha paru dizer a quem o ouve, com ninguém se atreve a falar mais do que convém. Bem sabe que o seu natural encanto inspira sempre simpatia e não contando embora para a salvação das almas, muito acrescenta ao brilho intelectual e até à falta dele, porém o comedimento é uma das maiores virtudes e muito lhe tem aproveitado saber usá-lo.

Sua Senhoria também se esqueceu deles, em busca da concentração que tarda em chegar. Não é a piedosa postura das imagens que lhe prende a atenção mais dó que o costume. Nem o fino debruado de talha à volta da capela-mor. Será a mesa vestida com a toalha branca de finíssimo linho?... Por ela se levanta logo que sua dama recolhe à sacristia. Passa os suaves dedos pelo tecido bordado feito sobre uma das estampas, heiligen, de xilogravuras vindas da Alemanha. Este motivo de S. Cristóvão a passar um rio com o menino ao colo, chegou a desagradar à rainha por fugir à representação angelical das mais v.ulgares. Mas depois, apesar da resistência aos elementos de forte inspiração oriental, dona Catarina elogiou fartamente a obra acabada. Sua Senhoria analisa cada pormenor, contente da escolha acertada do desenho, do mérito das bordadeiras do seu paço. Porém conclui que não é a toalha que lhe tira a concentração, é uma desconfiança...

Retrocede até à primeira fila de bancos, do lado direito do pouco largo transepto. Ajoelha, de novo, sem saber porque não flui a oração. Pensamentos desencontrados, ideias esfiapadas, já tinha dado por elas, ainda que há pouco o passeio na muralha lhe trouxesse profundo ânimo, como sempre. São tão gratos esses minutos ao raiar da aurora, ausência de ruído mas não silêncio total, a discreta musicalidade da manhã em tons pastel, chilreios de pássaros que agitam a copa das árvores antes das pessoas acordarem... Nenhum outro momento lhe diz tanta paz, ao mesmo tempo que a inibe de expressão verbal inteligível. Então porque é hoje tão débil a vontade de rezar?» In Maria Helena Ventura, A Musa de Camões, 2006, Saída de Emergência, 2006, ISBN 972-883-940-5.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT

JDACT, Camões, Maria Helena Ventura, História, Literatura, A Arte, MLAC, MLCT,