Quarenta e quatro anos antes. Lisboa, Out0no de 1405
«(…) A infanta nascera dos amores
ilícitos de dom João na mocidade, incapaz de segurar a carne e honrar os votos
como mestre da ordem de Avis, perdido o tino por conta da paixão pela plebeia Inês
Pires. Mas não renegara os filhos, Afonso e Beatriz, nem quando subiu ao
trono. Assumiu-os honradamente, obteve a legitimação do papa, fazendo-se
acompanhar por eles, mesmo após o matrimónio com dona Filipa de Lencastre. Fizera
Afonso conde de Barcelos, um dos fidalgos mais poderosos do reino, e casara-o
com a filha única e muito amada de Nuno Álvares Pereira, Beatriz Pereira de
Alvim, já nascida na grandeza. Mas não houvera honrarias que extinguissem na
alma de Afonso o estigma da origem ilegítima no ventre de uma mulher do povo,
nem o ressentimento de se ver preterido desde que os meios-irmãos, infantes de
Avis, haviam começado a vir ao mundo, nascidos do ilustre sangue de dona Filipa
de Lencastre. O despeito e o ciúme cravaram-se-lhe no coração como uma adaga.
Os modos refinados, mas sempre altivos, tapavam essa verdade aos olhos dos
infantes, e o rei fazia-se cego às máculas daquele que fora o seu primeiro
varão.
Mas dona Filipa crescera
habituada à traição que grassava na sua família e reconhecia aquela peçonha em
qualquer lugar. Desconfiava de Afonso e dos seus intentos, o que ditara um
desafecto mútuo para a vida. Impunha alguma distância e diferenças no
tratamento entre o conde de Barcelos e os legítimos, e o rei cedia, como lhe
cedia em quase tudo, grato pelo prestígio e dignidade que rrouxera para a nova dinastia,
com o mais elevado sangue da Casa real de Inglaterra. Ao contrário de Afonso, a
infanta Beatriz ganhara a afeição da rainha e fora elevada ao Olimpo da melhor fidalguia
inglesa com aquele casamento que a unia a sir Thomas FitzAlan, conde de Arundel,
arranjado pela madrasta, ciosa das purezas de casta.
Já engalanado para o cortejo real
que iria atravessar Lisboa e levar Beatriz ao cais, Pedro observava a postura
distante da mãe com Afonso de Barcelos antes de montarem os faustosos corcéis.
Dona Filipa de Lencastre estendeu ao filho do marido uma mão quase hirta e o
enteado depositou um beijo frio na peie de leite. Os gestos, quase
imperceptíveis, contrariavam as mesuras; o sorriso discreto e um aceno de
cabeça da rainha, a vénia cortesã de Afonso. Mas, sobretudo, contrastavam com
os modos que o infante vira no pai. Dpm João recebera o conde de Barcelos de
rosto prazenteiro e um abraço mal ele se erguera do cumprimento ao monarca, de
joelho em terra. A semanas de completar treze anos, Pedro ainda não desvendara todos
os meandros subtis da mente dos homens, nem os muitos compartimentos que nela
cabiam. Mas observava sinais que escapavam ao significado imediato das palavras
e detinha-se neles, fosse um olhar mais fugidio ou, ao invés, um demasiado
quieto e penetrante, para convencer e ocultar verdades, uma tremura das mãos,
uma rigidez do corpo, os numerosos desenhos que podiam formar as linhas dos
lábios. Escutava o tom, mais do que o som. Por isso, aquele gelo da mãe contava
mais do que a perfeição dos modos que os olhos viam. Afonso de Barcelos vivia
nos seus domínios do Norte e pouco vinha à corte, embora fosse conselheiro do
rei. Era chamado para exprimir juízos ao soberano sobre assuntos de vulto e
para celebrações. Talvez pelo trato pouco frequente e pela diferença de quinze
anos, aquele meio-irmão não era alguém fácil de conhecer. Via-o polido, mas
distante. Intrigou-se com aquele desacerto, como se tomasse consciência dele pela
primeira vez.
Intrigou-se com aquele desacerto,
como se tomasse consciência dele pela primeira vez. Existe alguma desavença
entre a senhora nossa mãe e Afonso de Barcelos?, indagou ao irmão Duarte, a seu
lado?» In Isabel Machado, Infante Dom Pedro, O Regente Visionário que o Poder
quis Calar, 2021, Editorial Presença, Manuscrito, 2021, JSBN 978-989-897-590-4.
Cortesia de EPresença/Manuscrito/JDACT