Até ao Fim do Mundo…
«Pego na pena e a minha mão voa sozinha,
tão rápida que aqui e ali um borrão de tinta mancha o pergaminho. Pouco me importa,
o que me interessa é fazer o esboço do meu túmulo, do túmulo de Inês, para que
o mestre entenda exactamente o que desejo que as suas mãos arranquem do bloco
de pedra branca, que escolhi para relicário dos nossos corpos. Passo a mão
suavemente pelo esquiço do jacente de Inês, com uma saudade tão insuportável
que me tira o ar. Perco-me nos detalhes da coroa, que quero magnífica, copiada
da que herdaria da minha mãe, o rosto oval, perfeito, o pescoço longo, um colo
de garça, causa de tantos ciúmes e intrigas. Desenhei-lhe as mãos longas finas,
as mãos que me remexiam o cabelo e abraçavam os nossos filhos, subindo-os para
o colo, beijando-lhes o arranhão no joelho ou as lágrimas de uma birra. As mãos
que tantas vezes me empurraram, zangadas, quando fui menos do que esperava de
mim. Os dedos que moviam agilmente as peças no tabuleiro, num xeque-mate que
tanto me enfurecia e tanto prazer lhe dava a ela, naqueles fins de tarde ao som
do alaúde. Numa mão calcei-lhe uma luva, não resisti, mas a outra deixei-a nua,
segurando aquele colar de pedras preciosas que lhe ofereci, sobre o vestido de
botões de pérola, o seu favorito. Era tão vaidosa, tão orgulhosa da sua figura
elegante que nem quatro gravidezes alteraram. Retoco os anjos que lhe suportam
a cabeça, ajudando-a a erguer-se para vir ao meu encontro, de novo. O mestre tem
de entender que quero que rodos admirem a rainha, a rainha que reina hoje em
Portugal, mesmo que a Fortuna só me tenha permitido coroá-la quando já não era
deste mundo.
Não durmo há dias, não consigo
dormir, tal a ânsia de ver gravada a nossa história em pedra, agora que finalmente
fui capaz de revelar o segredo, que me pesou cinco longos anos. Quero expor o nosso
caso perante Deus Nosso Senhor, como um advogado que defende o cliente perante
o juiz supremo. Na esperança de obter clemência.
Mas verdadeiramente é o perdão de
Inês que procuro. Pela minha cobardia, porque houve momentos em que não
consegui dominar o diabo em mim, alturas em que os meus terrores me possuíram,
e o medo do meu pai me entorpeceu a língua, enrolando-a, prendendo-a, impedindo-me
de falar mais alto, com mais força, de impor a minha vontade e o nosso amor.
Por ter deixado que a matassem». In Isabel Stilwell, Inês de Castro, Espia,
Amante, Rainha de Portugal, 2021, Planeta de Livros Portugal, 2021, ISBN
978-989-777-509-3.
Cortesia de PlanetaLPortugal/JDACT
JDACT, Isabel Stilwell, Inês de Castro, Cultura e Conhecimento,