sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Luís Miguel Rocha. A Mentira Sagrada. «Aqui, senhor inspector, proferiu o assistente, estendendo a mão e acendendo o isqueiro junto à ponta da cigarrilha. Depois entregou um telemóvel a Rafael»

Cortesia de wikipedia e jdact

Vaticano. 19 de Abril de 2005

«(…) Desculpe? Que raio de pergunta era aquela? Mera curiosidade, acrescentou. Deixou-o sem palavras. Ou melhor, teria de responder com cuidado para não ser mal interpretado. Acredito que há um mundo para além da morte onde estaremos em comunhão com Deus e... O Céu? Sim. E o Inferno? Para quem não salvou a alma, explicou Rafael. Não estava a ver onde aquilo ia dar. Acha que o turco e o alemão foram para o Céu ou para o Inferno? Gavache tinha o dom de o deixar sem palavras. Huh..., diria que para o Céu. Que homem tão estranho. Então acredita que levaram uma vida digna que lhes abriu as portas do Céu?, insistiu Gavache. Sem dúvida. Então, a seu ver, o que é que eles terão feito para que alguém tivesse planeado tão meticulosamente as suas mortes? O que fizeram… Ou o que sabiam? Gavache deixou a pergunta no ar. Rafael percebeu onde o inspector queria chegar. Não havia porque ocupava aquele posto. Era arguto. E há ainda outra coisa, prosseguiu Gavache. Rafael aguardou. Disse-me que veio por razões pessoais e não em nome do Papa, confirma? Correcto, afirmou Rafael apreensivo.

Mas estes crimes não foram ainda tornados públicos, senhor padre. Não há um jornalista que tenha conhecimento disto. Informámos a Santa Sé por razões muito especiais, o que torna a sua presença aqui muito estranha, concorda? Gavache não esperou pela resposta. Olhou-o directamente. Compreendo que seja amigo de uma das vítimas, mas terá de me responder porque razão apanhou o último avião do dia para vir, em nome pessoal, ajudar na investigação de um crime que ninguém sabe que aconteceu. O corpo do seu amigo ainda nem esfriou. Feita a pergunta e a observação virou-lhe as costas. Devia ser habito fazê-lo. Leve o seu tempo a preparar a resposta. Por…, foi o primeiro pensamento que lhe assomou à mente. Também o segundo e o terceiro. O quarto já foi uma variação menos lesiva. Grande mer… Jacopo acercou-se dele nesse momento, como se nada fosse. Então? O que queria o gajo? Rafael agarrou-o pelos colarinhos e ergueu-o alguns centímetros no ar à falta de parede onde encostá-lo. Meu grande cabr… praguejou. Jacopo agarrava as mãos de Rafael na ânsia de se libertar mas eram como garras possantes cravadas. Que foi?, conseguiu perguntar. Quem te deu a informação da morte do Zafer? Ainda não conseguia ligar aquele nome ao grupo dos mortos. Parecia irreal. Quem? A Secretária de Estado, respondeu a custo o outro. Rafael pousou-o. Digerira tudo mal desde o início. Não era o que se esperava dele. Os olhos abertos raiavam sangue. Estava furioso consigo mesmo. Tu disseste que tinha sido a Irene.

Que me tinha dito que ele apanhara o avião para Paris para ir ver um pergaminho. Não disse que foi a Irene quem me deu a noticia, completou Jacopo. O que é que se passa?, quis saber compondo-se. Quem te mandou dar-me a informação? Estava de costas voltadas a pensar. O Trevor, a pedido do secretário, explicou Jacopo. As ordens eram para virmos para Paris no primeiro voo. Não foi por isso que vieste? Rafael não respondeu. És completamente doido, acusou Jacopo. Eu não quero estar aqui. Vim porque me pagam para isso. Estava muito bem em Roma a moer o juízo à minha mulher. Rafael permaneceu calado, imóvel. Tu vieste mesmo por amizade, não foi? Pensaste que te fui dar a notícia e que a Irene te pediu para vires ver o que se passava? Eles não estavam juntos há anos. Pensaste que eu estava aqui por gostar da tua companhia?

Rafael tornou a olhar para as fotografias do corpo de Sigfried. Gavache chegou nesse preciso momento Chegamos a alguma conclusão?, inquiriu roufenhamente. O inspector disse que informou o Vaticano por razões muito especiais. Quais são? Seja bem-vindo, padre Rafael, saudou Gavache com um meio sorriso. Abriu uma cigarreira em tons prata e tirou outra cigarrilha do interior. Levou-a à boca e procurou o isqueiro para incendiar o prazer. Apalpou os bolsos. Jean Paul, gritou. Aqui, senhor inspector, proferiu o assistente, estendendo a mão e acendendo o isqueiro junto à ponta da cigarrilha. Depois entregou um telemóvel a Rafael. Por isto, limitou-se a dizer. Rafael pegou no telemóvel e olhou para ele, depois desviou o olhar para Gavache com uma expressão inquisitiva. O seu amigo teve uma grande presença de espírito, diga-se. Conseguiu ligar o gravador do telemóvel e gravou uma parte do que aconteceu. Talvez porque o aparelho tem um botão dedicado. O seu amigo usava-o recorrentemente para registar ideias e pensamentos. A parte que nos interessa não se percebe muito bem, mas o laboratório já está a trabalhar na gravação. De qualquer forma, há algo aqui bastante explícito. Tirou o aparelho das mãos de Rafael e procurou a gravação que pretendia. O som invadiu a sala.

Qual é o código que (ruído estático) te deu?, perguntava uma voz. Sei que o Vaticano mandou dar os códigos. HT, respondeu aquele que Rafael reconheceu como o amigo. Em que ordem? Não faço ideia. Zafer aparentava estar em grande sofrimento. Isso já vai passar. Foi de grande ajuda, Yaman Zafer. Que o Senhor tenha piedade de ti. O Papa rezará pela tua alma, disse o outro. O resto foram sons desconexos, que podia ser qualquer coisa, mas Rafael sabia. Era Zafer a morrer. Sentia o estertor da morte que acontecera naquele mesmo local. Por fim silêncio. Ouviram-se uns passos e uma frase de despedida. Ad maiorem Dei Glóriam. Gavache desligou o aparelho e encarou Rafael. Esta mer… diz-lhe alguma coisa? Rafael mirou-o com frieza e uma expressão mortífera. O demónio está nos pormenores. O assassino é jesuíta». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.

Cortesia de PEditora/JDACT

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