«(…) O profetista revelou o seu acordo com a sugestão: queria dirigir-se depressa ao Terreiro do Paço, à procura de um lugar num barco. Bão bocês os dois, disse irmã Alice, e fujam prò Vrasil. Eu num cunsigo. É muito longe, a perna nã me dexa caminhar. Decidido a pôr-se a caminho, o profetista perguntou a irmã Margarida: Cê vem? Ela queria ir, mas não podia deixar irmã Alice ali, naquele estado. Abanou a cabeça: Não a deixo aqui sozinha. Vai andando, nós vamos mais devagar. Ficaram as duas a vê-lo afastar-se, a caminho da zona a que chamavam Baixa, onde antes havia tantos prédios e tantas ruas e agora só existiam ruínas e poeira. Sempre com o seu terror íntimo das chamas, irmã Margarida contou-me que já àquela hora se começavam a ver colunas de fumo negro, provenientes de pequenos incêndios. A freira mais velha comentou que o profetista não devia ter tomado aquela direcção, pois ia cruzar-se com os fogos. Um arrepio percorreu a espinha de irmã Margarida, ao lembrar-se do destino que lhe estava reservado, o de morrer numa fogueira. Benzeu-se. Tens medo do fuago?, perguntou irmã Alice, ao vê-la benzer-se. Sim.
A freira mais velha observou-a e
depois tocou-lhe com um dedo no pescoço, nas marcas da corda com que ela
tentara enforcar-se. Qué isto? A rapariga bonita baixou os olhos envergonhada.
A outra esperou que ela falasse, mas como isso não aconteceu ofereceu voluntariamente
uma história. Mê pai morreu tinha eu oito anos. Matou-se, tinha díbidas e vevia
muito. Saves cumo ele se matou? Não, respondeu irmã Margarida. Atou uma corda a
um carbalho grande que habia perto de nossa casa, e enforcou-se. Lemvro-me de
ber o corpo dele, já morto, pendurado lá no alto, e lemvro-me de uns bizinhos
nossos o terem vaixado, e lemvro-me da cara dele, e das marcas da corda no
pescoço. Olhou para a rapariga: Cumo essas... Depois, sorriu e acrescentou: Tens
mesmo de fugir... Determinada, fez um esforço para se levantar. Irmã Margarida
deu-lhe o braço e as duas recomeçaram a caminhar. Num bamos por aquele lado,
decidiu irmã Alice, apontando para os fumos dos incêndios. Num te quero mais
assustada do que já tás. Irmã Margarida sorriu-lhe, com um sentimento de
gratidão. Saíram do Rossio pelo canto esquerdo, como se fossem para a Sé ou
para o Castelo, e a última vez que irmã Margarida olhou para trás viu ao longe
as vestes brancas de dois guardas da Inquisição (maldita), que procuravam
prisioneiros evadidos.
Irmã
Alice era, sem dúvida, uma mulher inteligente. Conseguira afastar-se do palácio
e do convento, fugindo aos guardas, e conseguira também afastar o profetista,
fingindo-se incapaz de ir até ao Tejo. Depois, manipulara o medo do fogo que a rapariga
sentia, um medo que ela associava à prisão, à solidão, à morte. Em pouco tempo,
dominara-a, obrigando-a a acompanhá-la.
Quando
recordamos uma história que se passou há um ano, tentamos colocar os
acontecimentos por ordem cronológica, para que possamos olhar para o que
aconteceu de uma forma lógica e compreensível. É evidente que não assisti a
muitos dos factos aqui descritos, e só soube deles através dos próprios, quando
me contaram, ou de terceiros. Não sei, por isso, se tudo o que conto é verdade,
se aconteceu exactamente assim, mas não tenho outra forma de o fazer, pois não?
Além disso, é evidente que as histórias que conto, e a forma como o faço, também
transportam os meus sentimentos sobre as pessoas, sejam elas bons ou maus, e as
minhas opiniões, sejam elas justas ou injustas. Mas como poderia ser de outra
forma? Recorro à minha memória para ordenar as emoções e os factos, mas a minha
memória não é independente de mim, das minhas ideias e dos meus sentimentos,
pois não?
Quando Hugh Gold conseguiu finalmente raciocinar, pensou no
que fazer a seguir, como reorganizar a sua vida. Talvez se devesse dirigir a
casa do embaixador. Se continuasse até ao Rossio, podia depois subir até Santa
Marta, e o seu amigo certamente o acolheria. Sorriu, ao pensar que ainda na véspera,
antes de ir ter com a senhora Locke, estivera a jantar com o embaixador na casa
do marquês de Marialva, no seu grande palácio, cujo pátio estava cheio de
cavalariças e estrumes e onde os porcos passeavam alegremente, à solta. A fauna
era vasta e colorida, criados e criaditas, frades e boticários, toureiros e brigadeiros,
todos a escutarem, contentes, os fadinhos cantados no pátio e as anedotas
contadas à varanda. O repasto fora suculento, numa sala aquecida pelos
braseiros, e haviam saboreado os doces e os guisados com gosto. Fora um serão
divertido e, no final, tanto ele como o embaixador seguiram para os encontros
amorosos, com as respectivas amantes. A do embaixador era a condessa de Vila Meã,
uma portuguesa cujo marido passava em Paris uma temporada, e que se sentia
muito sozinha. Quanto ao capitão, fora visitar a senhora Locke, cujo marido se
deitava sempre com as galinhas, pois era um comerciante avarento, que
trabalhava de sol a sol. A pobre senhora há muito que não recebia mimos do
marido, e ao ver o capitão pela primeira vez soltara os seus olhares, sedutores
e desejosos. Apesar de, na sua actividade, se cruzar com o senhor Locke por
diversas vezes, o capitão não desincentivara as investidas da senhora, bem pelo
contrário. O facto de ela ser casada com o representante de uma casa
concorrente era mesmo uma vantagem, pois podia dar-lhe acesso a informação útil,
tanto para os seus negócios, como para partilhar com o embaixador, que gostava
de saber as novidades na comunidade inglesa da cidade. Com uma natureza
semelhante, o capitão e a senhora Locke caíram nos braços um do outro dois dias
depois de se conhecerem. No último ano, encontravam-se, com regularidade
semanal, às sextas-feiras à noite. Hugh Gold batia no postigo da janela da
senhora, ela abria a porta das traseiras e conduzia-o até uma sala, que fechava
à chave, não fosse o marido acordar subitamente». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O
Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das
Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.
Cortesia de CdasLetras/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, Lisboa, Terramoto de 1755,