domingo, 2 de janeiro de 2022

Quando Lisboa Tremeu. 1755. Domingos Amaral. «Se continuasse até ao Rossio, podia depois subir até Santa Marta, e o seu amigo certamente o acolheria. Sorriu, ao pensar que ainda na véspera…»

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«(…) O profetista revelou o seu acordo com a sugestão: queria dirigir-se depressa ao Terreiro do Paço, à procura de um lugar num barco. Bão bocês os dois, disse irmã Alice, e fujam prò Vrasil. Eu num cunsigo. É muito longe, a perna nã me dexa caminhar. Decidido a pôr-se a caminho, o profetista perguntou a irmã Margarida: Cê vem? Ela queria ir, mas não podia deixar irmã Alice ali, naquele estado. Abanou a cabeça: Não a deixo aqui sozinha. Vai andando, nós vamos mais devagar. Ficaram as duas a vê-lo afastar-se, a caminho da zona a que chamavam Baixa, onde antes havia tantos prédios e tantas ruas e agora só existiam ruínas e poeira. Sempre com o seu terror íntimo das chamas, irmã Margarida contou-me que já àquela hora se começavam a ver colunas de fumo negro, provenientes de pequenos incêndios. A freira mais velha comentou que o profetista não devia ter tomado aquela direcção, pois ia cruzar-se com os fogos. Um arrepio percorreu a espinha de irmã Margarida, ao lembrar-se do destino que lhe estava reservado, o de morrer numa fogueira. Benzeu-se. Tens medo do fuago?, perguntou irmã Alice, ao vê-la benzer-se. Sim.

A freira mais velha observou-a e depois tocou-lhe com um dedo no pescoço, nas marcas da corda com que ela tentara enforcar-se. Qué isto? A rapariga bonita baixou os olhos envergonhada. A outra esperou que ela falasse, mas como isso não aconteceu ofereceu voluntariamente uma história. Mê pai morreu tinha eu oito anos. Matou-se, tinha díbidas e vevia muito. Saves cumo ele se matou? Não, respondeu irmã Margarida. Atou uma corda a um carbalho grande que habia perto de nossa casa, e enforcou-se. Lemvro-me de ber o corpo dele, já morto, pendurado lá no alto, e lemvro-me de uns bizinhos nossos o terem vaixado, e lemvro-me da cara dele, e das marcas da corda no pescoço. Olhou para a rapariga: Cumo essas... Depois, sorriu e acrescentou: Tens mesmo de fugir... Determinada, fez um esforço para se levantar. Irmã Margarida deu-lhe o braço e as duas recomeçaram a caminhar. Num bamos por aquele lado, decidiu irmã Alice, apontando para os fumos dos incêndios. Num te quero mais assustada do que já tás. Irmã Margarida sorriu-lhe, com um sentimento de gratidão. Saíram do Rossio pelo canto esquerdo, como se fossem para a Sé ou para o Castelo, e a última vez que irmã Margarida olhou para trás viu ao longe as vestes brancas de dois guardas da Inquisição (maldita), que procuravam prisioneiros evadidos.

Irmã Alice era, sem dúvida, uma mulher inteligente. Conseguira afastar-se do palácio e do convento, fugindo aos guardas, e conseguira também afastar o profetista, fingindo-se incapaz de ir até ao Tejo. Depois, manipulara o medo do fogo que a rapariga sentia, um medo que ela associava à prisão, à solidão, à morte. Em pouco tempo, dominara-a, obrigando-a a acompanhá-la.

Quando recordamos uma história que se passou há um ano, tentamos colocar os acontecimentos por ordem cronológica, para que possamos olhar para o que aconteceu de uma forma lógica e compreensível. É evidente que não assisti a muitos dos factos aqui descritos, e só soube deles através dos próprios, quando me contaram, ou de terceiros. Não sei, por isso, se tudo o que conto é verdade, se aconteceu exactamente assim, mas não tenho outra forma de o fazer, pois não? Além disso, é evidente que as histórias que conto, e a forma como o faço, também transportam os meus sentimentos sobre as pessoas, sejam elas bons ou maus, e as minhas opiniões, sejam elas justas ou injustas. Mas como poderia ser de outra forma? Recorro à minha memória para ordenar as emoções e os factos, mas a minha memória não é independente de mim, das minhas ideias e dos meus sentimentos, pois não?

Quando Hugh Gold conseguiu finalmente raciocinar, pensou no que fazer a seguir, como reorganizar a sua vida. Talvez se devesse dirigir a casa do embaixador. Se continuasse até ao Rossio, podia depois subir até Santa Marta, e o seu amigo certamente o acolheria. Sorriu, ao pensar que ainda na véspera, antes de ir ter com a senhora Locke, estivera a jantar com o embaixador na casa do marquês de Marialva, no seu grande palácio, cujo pátio estava cheio de cavalariças e estrumes e onde os porcos passeavam alegremente, à solta. A fauna era vasta e colorida, criados e criaditas, frades e boticários, toureiros e brigadeiros, todos a escutarem, contentes, os fadinhos cantados no pátio e as anedotas contadas à varanda. O repasto fora suculento, numa sala aquecida pelos braseiros, e haviam saboreado os doces e os guisados com gosto. Fora um serão divertido e, no final, tanto ele como o embaixador seguiram para os encontros amorosos, com as respectivas amantes. A do embaixador era a condessa de Vila Meã, uma portuguesa cujo marido passava em Paris uma temporada, e que se sentia muito sozinha. Quanto ao capitão, fora visitar a senhora Locke, cujo marido se deitava sempre com as galinhas, pois era um comerciante avarento, que trabalhava de sol a sol. A pobre senhora há muito que não recebia mimos do marido, e ao ver o capitão pela primeira vez soltara os seus olhares, sedutores e desejosos. Apesar de, na sua actividade, se cruzar com o senhor Locke por diversas vezes, o capitão não desincentivara as investidas da senhora, bem pelo contrário. O facto de ela ser casada com o representante de uma casa concorrente era mesmo uma vantagem, pois podia dar-lhe acesso a informação útil, tanto para os seus negócios, como para partilhar com o embaixador, que gostava de saber as novidades na comunidade inglesa da cidade. Com uma natureza semelhante, o capitão e a senhora Locke caíram nos braços um do outro dois dias depois de se conhecerem. No último ano, encontravam-se, com regularidade semanal, às sextas-feiras à noite. Hugh Gold batia no postigo da janela da senhora, ela abria a porta das traseiras e conduzia-o até uma sala, que fechava à chave, não fosse o marido acordar subitamente». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

 

Cortesia de CdasLetras/JDACT

 

JDACT, Domingos Amaral, Lisboa, Terramoto de 1755,