sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Luís Miguel Rocha. A Mentira Sagrada. «A agenda mental normalmente assinalava sempre qualquer coisa, uma reunião, um telefonema, um almoço, comprar um presente, uma flor para Myriam…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Vaticano. 19 de Abril de 2005

«(…) Diz-se que a noite é sempre boa conselheira, mas é também a coberto dela que se perpetram crimes, que se contam segredos, que se perpetuam mistérios. Jantaram na mesa número 205 do deck 14. Myriam quis que fossem ver a peça que estava em cartaz. Na verdade era mais do que uma, pois chamava-se Musicais da Broadway, um resumo das principais cenas e músicas de Cats, West Side Story, O Fantasma da Ópera e outros clássicos renomados, da batuta de Andrew Lloyd Webber. Não era obra que ficasse na retina, mas foi agradável. Uma espécie de pastiche de digestão fácil porque afinal em férias não há porque se desgastar com dramas ou obras de profundidade dramática excessiva. Recolheram ao quarto já passava das onze da noite. Myriam estava feliz e era esse o objectivo. Estás bem, meu querido?, perguntou-lhe. Pareces muito desligado hoje. Andas bem? Estou bem, Myr. Não te preocupes. Falaste com o Ben esta noite? Falei, mentiu. Vou-lhe ligar novamente à meia-noite, se não te importas. Hoje foi um dia importante para ele. Tão tarde? E ainda mais em Jerusalém, censurou franzindo o cenho. É. Ele pediu. Está bem. Mas não fiques uma hora ao telefone. Já sabes que tenho frio de noite.

Está descansada, querida. Será rápido. A voz sumia-se cada vez mais. Não conseguira falar com o Ben Júnior. O telefone estivera sempre desligado. O assistente não conseguira localizá-lo em lado nenhum. Não estava na propriedade que os Isaac possuíam em Telavive, tão-pouco apareceu na sede da empresa . Temia que o bilhete que recebera ao pequeno-almoço estivesse relacionado com o desaparecimento do filho. Não fazia ideia de quem o enviara, nem quem poderia estar ao corrente do Statu Quo. Fosse como fosse em breve o saberia. Passou o dia a desconfiar de tudo e de todos. Dos empregados sorridentes, dos restantes turistas, independentemente do género; só Myriam escapava à suspeita. Perguntou-se centenas de vezes se o emissor da mensagem estaria no barco, se estaria a observá-lo, se, se, se. Isto num homem que sempre evitou os ses. No dia anterior aportaram em Livorno e visitaram Florença e poderia muito bem ter sido aí que o interlocutor entrara, muito a tempo de sair no dia seguinte, em Nápoles, aproveitando o corre-corre do navio, de porto em porto na costa ocidental italiana. Era uma agulha num palheiro no meio de três mil pessoas. Beijou Myriam carinhosamente na testa e saiu para a piscina.

Não demores, advertiu Myriam antes de ele bater gentilmente à porta. Não sabia que outra resposta dar se não um Será rápido, mas a verdade é que não sabia para o que ia. A agenda mental normalmente assinalava sempre qualquer coisa, uma reunião, um telefonema, um almoço, comprar um presente, uma flor para Myriam, mas, neste ponto, a nove minutos da meia-noite, estava em branco. Caminhou pelo corredor do deck 14 em direcção ao elevador. Subiria um lanço e dali à piscina não levaria mais de dois ou três minutos no seu passo lento e nervoso. As pernas tremiam-lhe como se pressentissem um abismo. Passou por alguns turistas que cambaleavam à procura do equilíbrio no regresso ao quarto que não lembravam onde ficava. Os empregados arrumavam a desordem do dia, o lixo que os impudicos lançavam ao chão sem culpa, beatas de cigarro, copos de plástico, pedaços de comida.

Perto da piscina o movimento era menor, estranhamente, ou talvez não. Bem Isaac deu por si ofegante. Não fora grande caminhada, nem havia subidas ou descidas íngremes. Não estava ninguém. A água ondulava ao sabor do gigantesco navio. Iluminação submersa pintalgava a água de um azul-vivo, cujo movimento ondeante a transformava num organismo com vida. Não viu vivalma. Estranho. Mas nada naquele dia fora normal. Consultou o relógio. Onze e cinquenta e sete. Os segundos matutavam na cabeça dele ou seria o coração a latejar nas veias que marcava o ritmo da inquietação. Os três minutos pareceram seis e depois doze, até que chegou a meia-noite e..., nada aconteceu. Verdade que era apenas a hora do seu relógio, talvez ainda não fosse meia-noite no relógio do outro interveniente, fosse ele ou ela quem fosse. Olhou ao seu redor e não sentiu qualquer movimento. A noite estava fria, desagradável. O navio deslizava lentamente para sul, abrindo caminho pelas águas do Tirreno. Dois minutos depois da hora, segundo o seu relógio, ouviu um disparo oco. Não saberia apontar a proveniência dele mas é certo que o que quer que fosse não passou nem perto de si. De qualquer forma sentia-se demasiado exposto. Momentos após o disparo e as dúvidas viu algo a descer no céu, lentamente. Estava a cerca de 50 metros de altura e descia em direcção à piscina. Ao princípio não conseguiu descortinar o que era. Um objecto voador não identificado. Aos trinta metros conseguiu dar um nome ao objecto. Chamava-se paraquedas. Imune à observação atenta de Ben Isaac, o paraquedas manteve a sua descida serena». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.

Cortesia de PEditora/JDACT

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