A Ponte dos Suspiros
Os
Sinais do Corpo
«(…)
Pela meia-manhã o sol rompeu. No Campo san Luca uma companhia de comediantes
armara seu teatro. Trupe vária e colorida de belos rapazes e raparigas,
meias-calças a tornear coxas ágeis na dança viva, gibões de abas a esvoaçar,
saias rodadas baloiçantes, cabeleiras e narizes postiços, mascarilhas de veludo
e cetim preto, cartolas, gorros, boinas, carapuços, chapéus, toucas, turbantes,
borzeguins, sapatos de salto, pantufos, golas folhadas, gargantilhas, tranças,
blusas listradas, corpinhos justos decotados, abanicos, lantejoulavam o azul, o
branco, o creme, o amarelo, o carmim, o verde, o castanho, cantavam madrigais
picantes, risos brejeiros de actores e público ao som de mandolinas, sacabuxas,
charamelas, violas de arco, atabales, trombetas e pífaros... Ricchezza non
cerchiam né piú ventura che balli e canti e flori e ghirlandelle... Riqueza
não buscamos nem ventura senão bailes, canções, guirlandas, flores...
Vede
o que aí vai, Bertoldo. Quanto pecado mortal!, dizia o cónego Baptista entrando
escandalizado. Comediantes, Sua Eminência? Sua Eminência já perguntou por
Monsenhor duas vezes. Pressa? Parece que há novidade. Lê e relê um papel
acabado de chegar e anda lá em cima de um lado para o outro... Eu subo, disse o
cónego dirigindo-se à escadaria. Ah! Monsenhor! Bem-vindo. Lede isto, lede isto
- dizia o arcebispo. O cónego Battista tomou o documento: Clemens octavus
per Divinam providentia Ser Servorum Dei...
Mas
é um breve de Sua Santidade! Sem mais. E quereis saber? Intima Filipe terceiro,
sob pena de excomunhão, a entregar ao seu legítimo senhor o reino de Portugal! Ah!
Finalmente o papa acede a defender o nosso amigo! E a Senhoria... tem-no preso!
Terá de soltá-lo.
Ben
venga primavera
che
vuol l'uom s'innamori. E voi, donzelle, a schiera con li
vostri
amadori,
che
di rose e di flori
vi
fate belle il maggio...
Primavera
chegada, tome-se homem de amores e vós, moças, mãos dadas com vossos amadores,
que de rosas e flores belas vos fazei em Maio...
A
folia dos comediantes abandonara o palco e descia agora, rodeada de povo, a
Calle dei Fabbri em direcção à grande piazza. Que pode contra isto um pobre
irmão de São Bernardo?, ia remoendo com os botões da roupeta frei Crisóstomo da
Visitação. Causas perdidas as dos meus escritos em defesa dos privilégios do
meu convento cisterciense da longínqua Alcobaça? A de sustentar os direitos
deste infeliz rei ressuscitado?... Cantai, bailai, que a vida são dois dias...
Ides a falar sozinho, frei Crisóstomo?, perguntava Brito Almeida juntando-se ao
frade na calle San Luca. Gostava de ter a ilusão e a alegria desses. Gente
nova, futuro de esperanças. Ides a San Beneto?, Para lá caminho.
Pareceis
contente. Trazeis novidades? Chegaram novas de Paris? da Holanda?... Conjugam-se os astros em nosso favor. Os
nossos amigos devem estar a chegar, se não estão já em Veneza. E Sua
Santidade... Sua Santidade...? Olhai e pasmai!, e Brito Cunha mostrava a cópia
do breve: ... emitiu finalmente a sentença em pró de el-rei dom Sebastião! Graças
a Deus! Mostrai, mostrai». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros,
1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.