quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Pareceis contente. Trazeis novidades? Chegaram novas de Paris? da Holanda?... Conjugam-se os astros em nosso favor. Os nossos amigos devem estar a chegar, se não estão já em Veneza»

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A Ponte dos Suspiros

Os Sinais do Corpo

«(…) Pela meia-manhã o sol rompeu. No Campo san Luca uma companhia de comediantes armara seu teatro. Trupe vária e colorida de belos rapazes e raparigas, meias-calças a tornear coxas ágeis na dança viva, gibões de abas a esvoaçar, saias rodadas baloiçantes, cabeleiras e narizes postiços, mascarilhas de veludo e cetim preto, cartolas, gorros, boinas, carapuços, chapéus, toucas, turbantes, borzeguins, sapatos de salto, pantufos, golas folhadas, gargantilhas, tranças, blusas listradas, corpinhos justos decotados, abanicos, lantejoulavam o azul, o branco, o creme, o amarelo, o carmim, o verde, o castanho, cantavam madrigais picantes, risos brejeiros de actores e público ao som de mandolinas, sacabuxas, charamelas, violas de arco, atabales, trombetas e pífaros... Ricchezza non cerchiam né piú ventura che balli e canti e flori e ghirlandelle... Riqueza não buscamos nem ventura senão bailes, canções, guirlandas, flores...

Vede o que aí vai, Bertoldo. Quanto pecado mortal!, dizia o cónego Baptista entrando escandalizado. Comediantes, Sua Eminência? Sua Eminência já perguntou por Monsenhor duas vezes. Pressa? Parece que há novidade. Lê e relê um papel acabado de chegar e anda lá em cima de um lado para o outro... Eu subo, disse o cónego dirigindo-se à escadaria. Ah! Monsenhor! Bem-vindo. Lede isto, lede isto - dizia o arcebispo. O cónego Battista tomou o documento: Clemens octavus per Divinam providentia Ser Servorum Dei...

Mas é um breve de Sua Santidade! Sem mais. E quereis saber? Intima Filipe terceiro, sob pena de excomunhão, a entregar ao seu legítimo senhor o reino de Portugal! Ah! Finalmente o papa acede a defender o nosso amigo! E a Senhoria... tem-no preso! Terá de soltá-lo.

Ben venga primavera

che vuol l'uom s'innamori. E voi, donzelle, a schiera con li

vostri amadori,

che di rose e di flori

vi fate belle il maggio...

Primavera chegada, tome-se homem de amores e vós, moças, mãos dadas com vossos amadores, que de rosas e flores belas vos fazei em Maio...

A folia dos comediantes abandonara o palco e descia agora, rodeada de povo, a Calle dei Fabbri em direcção à grande piazza. Que pode contra isto um pobre irmão de São Bernardo?, ia remoendo com os botões da roupeta frei Crisóstomo da Visitação. Causas perdidas as dos meus escritos em defesa dos privilégios do meu convento cisterciense da longínqua Alcobaça? A de sustentar os direitos deste infeliz rei ressuscitado?... Cantai, bailai, que a vida são dois dias... Ides a falar sozinho, frei Crisóstomo?, perguntava Brito Almeida juntando-se ao frade na calle San Luca. Gostava de ter a ilusão e a alegria desses. Gente nova, futuro de esperanças. Ides a San Beneto?, Para lá caminho.

Pareceis contente. Trazeis novidades? Chegaram novas de Paris? da Holanda?...  Conjugam-se os astros em nosso favor. Os nossos amigos devem estar a chegar, se não estão já em Veneza. E Sua Santidade... Sua Santidade...? Olhai e pasmai!, e Brito Cunha mostrava a cópia do breve: ... emitiu finalmente a sentença em pró de el-rei dom Sebastião! Graças a Deus! Mostrai, mostrai». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

 Cortesia de Difel/JDACT

 JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,