Lisboa, 24 de Dezembro de 1808
«A rapariga bonita, ao ver cinco lugares
postos à mesa, estacou surpreendida. Naquela véspera de Natal, pensava que a consoada
ia ser só para os dois. O general Galopim, um militar medalhado, com setenta anos
e um porte digno, calvo e de olhar profundo, repleto de integridade pública e fortuna
privada, mantinha-a enclausurada no seu palacete, nos arredores de Lisboa. Vigiada
pelos guardas do velho militar, só podia ir ao jardim passear, mas nunca abandonar
a propriedade ou receber visitas. Para quem seriam os outros três lugares à mesa,
se o general nunca convidava ninguém?
Pessoas importantes, respondeu Galopim,
com um sorriso cínico. Por isso vos pedi para usar o vestido e colocar a tiara.
A rapariga bonita franziu a testa, intrigada. Quem? O meu genro e o meu neto. E
frei António, declarou o general. Francisca alegrou-se, gostava de dom Miguel,
servira em casa dele e tinha muito afecto pelo filho Luís, de quatro anos.
O catraio só fala em vós, a Fanchica
isto, a Fanchica aquilo!, contou Galopim. Vai ficar feliz por vos ver. Que lhes
ides dizer?, inquietou-se a rapariga. Animado, o pomposo general declarou que contaria
a verdade: desejava viver com ela para sempre. Quando terminasse o período de luto
pela morte da sua filha Ana, poderiam casar. Mas ê nã me quero casar!, protestou
Francisca. Estava ali forçada e só por isso se dava ao general, mas jamais iria
à igreja mentir, pois não o amava. Contudo, Galopim ignorou-a. Além disso, quero
que Miguel e o frade vos vejam comigo.
Àquele ciumento feroz, sempre lhe
parecera que o genro ficara claramente enfeitiçado pela rapariga. Tal como o frade,
que era um religioso mas tinha alma de falsário. A ceia da consoada seria a ocasião
perfeita para lhes mostrar quem possuía Francisca. Frei António nã foi para o Norte?,
perguntou esta». In Domingos Amaral, As Sete Marias Que Matavam Franceses, Casa das
Letras, 2022, ISBN 978-989-661-437-9.
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