terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Napoleão Vem Aí. Domingos Amaral. «Quem tratava Ana era um francês, Charles BonHomme, mas ele partiu hoje para França, de barco, por isso terão de procurar um médico português, daqueles a quem Ana chamava poltrões»

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A Invasão Francesa

30 de Setembro de 1808 (dia da morte de Ana)

«Naquela manhã, pelas nove e meia, um grito estridente acorda Miguel. Ainda estremunhado, pensa tratar-se da mulher, que passa a vida numa berraria. Mas afinal quem o chama é Francisca, a criada, dizendo-lhe que Ana morreu. Tá fria e cadáver!, garante a rapariga, à porta do quarto. O dono do palacete pressente que lhe anunciam a verdade e o seu coração divide-se entre a tristeza e um inesperado alívio. Tendes a certeza?, questiona, enquanto se levanta, à pressa. Francisca leva a mão à cara, onde está desenhada uma feia cicatriz, que vai do canto do olho direito até ao queixo. A realidade da morte de Ana é tão palpável como aquela ferida. Tã certo como isto! Já vi muitos assim, tá morta!

De roupão, Miguel avança pelo corredor em passo rápido, enquanto examina o estranho e misto sentimento que o invade. Ana é a mãe do seu filho, estão casados há uma década, devia amá-la. Mas não pode mais. Aquela louca decepcionou-o profundamente. Ontem, odiou-a ao ponto de desejar matá-la e agora sente-se livre, com uma vida nova pela frente. Tá ali, indica Francisca. Ao entrar no quarto da mulher, Miguel estranha a luz. Nas últimas semanas, Ana não abria os reposteiros e o sol, que agora irrompe pela janela e ilumina a cama, nunca ali entrava. Com ela viva, o quarto parecia um túmulo, mas esta manhã, quando é finalmente um jazigo, apresenta-se radioso. Tá morta!, repete Francisca.

Miguel aproxima-se da cama, aonde há muitos meses não se deita. Ana está tombada ligeiramente para a direita, próxima da cabeceira do mesmo lado. De olhos fechados. Já estava assim? Francisca jura que jamais seria capaz de cerrar as pálpebras da senhora, não tem coragem para coisas dessas. Ana está como a encontrou. Chamou-a várias vezes, mas não lhe tocou. Até abri as cortinas, prá ver melhor! Depois, assustou-se e fugiu a correr. Foi o demónio, murmura Francisca.

Miguel toca na mão direita e depois no nariz da mulher. Sente urna opressão no peito, mas não se emociona. As perturbações da véspera sobrepõem-se Tanta desilusão e raiva. O demónio... repete em voz baixa. Nos últimos dez meses, o inferno esvaziou-se e os demónios vieram todos para Portugal. Desde que os exércitos de Napoleão invadiram o reino, o sangue correu pelas ruas, os massacres multiplicaram-se, houve assassinos à solta, destruição e saque geral. No país e em sua casa, onde os diabos também estiveram. Temos de chamar um medico, diz.

Quem tratava Ana era um francês, Charles BonHomme, mas ele partiu hoje para França, de barco, por isso terão de procurar um médico português, daqueles a quem Ana chamava poltrões. Não respira, confirma Miguel. Afasta os dedos do nariz dela e observa os lábios escuros e a boca finalmente fechada. A historia de Ana foi a história dos seus gritos, permanentes e insuportáveis. Gritos às criadas, ao filho, ao pai, aos cocheiros. Nunca mais os dará». In Domingos Amaral, Napoleão Vem Aí, Casa das Letras, LeYa, 2021, ISBN 978-989-661-041-8.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, Napoleão, Literatura, Portugal,