«(…) Domingos Mau-Tempo não chegará a velho. Um dia, quando já tiver feito cinco filhos à mulher, mas não por essa razão tão comum, passará uma corda pelo ramo duma árvore, num descampado quase à vista de Monte Lavre, e enforcar-se-á. Entretanto, andou com a casa às costas por outros lugares, fugiu por três vezes à família e da última não pôde tomar às boas pazes porque tinha chegado a sua hora. Fim desgraçado lhe futurara o sogro Laureano Carranca quando teve de ceder à teimosia de Sara, enquerençada ao ponto de jurar que se não casasse com Domingos Mau-Tempo, não casaria com ninguém. Bem clamou Laureano Carranca em suas cóleras, É um landim relaxado, com fama de bêbedo e que mal acabará. Andava nisto a guerra familiar, eis que Sara da Conceição apareceu grávida, argumento derradeiro e em geral eficaz quando os da persuasão e imploração se gastaram. Certa manhã, Sara da Conceição saiu de casa, era Maio o mês, e atravessou os campos até ao lugar onde combinara encontrar-se com Domingos Mau-Tempo. Ali estiveram nem tanto como meia hora, deitados entre o trigo alto, e quando Domingos regressou às suas formas e Sara a casa dos pais, ele ia assobiando de comprazido e ela tremia como se o sol não queimasse já. E, quando atravessou a ribeira a vau, teve de ir agachar-se e lavar-se debaixo duns salgueiros porque o sangue não parava de escorrer-lhe pelas pernas.
João foi feito, ou, para
biblicamente falar, concebido, nesse mesmo dia, o que, segundo parece, é raro,
pois da primeira vez, por razões do desconcerto da ocasião, não costuma a
semente pegar, só depois. E é certo que os seus olhos azuis, que ninguém na
família tinha ou se lembrava de ter visto em parente chegado ou afastado,
grande espanto causaram, senão suspeita, sabemos nós que injusta esta era em
mulher que só para rectamente casar se desviara do direito caminho das virgens
e fora deitar-se no meio duma seara de trigo com aquele único homem, abrindo de
sua vontade as pernas, com muito sofrimento. Já de vontade não fora aquela
outra rapariga, quase quinhentos anos antes, que estando um dia sozinha na
fonte a encher sua infusa, viu chegar-se um daqueles estrangeiros que viera com
Lamberto Horques Alemão, alcaide-mor de Monte Lavre por mercê do rei dom João o
primeiro, gente de falar desentendido, e que, desatendendo aos gritos e rogos
da donzela, a levou para uma espessura de fetos onde, a seu prazer, a forçou.
Era um galhardo homem de pele branca e olhos azuis, que não tinha outra culpa
que o atiçado do sangue, mas ela não foi capaz de lhe querer bem e sozinha
pariu como pôde ao fim do tempo.
Assim, durante quatro séculos
estes olhos azuis vindos da Germânia apareceram e desapareceram, tal como os
cometas que se perdem no caminho e regressam quando com eles já se não conta,
ou simplesmente porque ninguém cuidou de registar as passagens e descobrir a sua
regularidade. Está a família na sua primeira mudança. Vieram de Monte Lavre a
São Cristóvão em dia de Verão que acabou chuvoso. Atravessaram todo o concelho
de norte a sul, que ideia teria dado na cabeça de Domingos Mau-Tempo mudar-se
para tão longe, este homem é um remendão, um landim relaxado, mas em Monte
Lavre já a vida se lhe ia dificultando, era o vinho e alguns tratos de mão
canhota, Senhor sogro, empreste-me a sua carroça e o seu burro, que eu vou
viver para São Cristóvão, Pois vá e veja se cobra juízo para seu bem, de sua
mulher e filho, e traga-me depressa o burro e a carroça, que me fazem falta.
Vieram atalhando caminho, por carreteiros, aproveitando quando podiam a estrada
real, mas logo para encurtar metendo ao campo, pelo sopé dos cabeços. Almoçaram
à sombra duma árvore, e Domingos Mau-Tempo emborcou uma garrafa de vinho que se
perdeu com o suor da jornada. Viram Montemor de longe, a banda esquerda, e
continuaram para o sul. Choveu-lhes a uma hora de São Cristóvão, foi um dilúvio
de mau prenúncio, mas hoje o dia está de sol e Sara da Conceição, sentada no
quintal, ponteia uma saia, enquanto o filho, ainda pouco seguro nas pernas, vai
tenteando ao longo da parede da casa». In José Saramago, Levantado do Chão,
Editorial Caminho, 1980, ISBN 978-972-212-236-8.
Cortesia de ECaminho/JDACT
JDACT, José Saramago, Nobel, A Arte da Escrita,