«(…) Minha própria busca pela liberdade e meus anos de experiência como psicóloga clínica me ensinaram que o sofrimento é universal, mas que o complexo de vítima é opcional. Existe uma diferença entre ser vítima e assumir o papel de vítima. Somos todos susceptíveis a nos tornar vítimas de alguma maneira. Todos sofreremos algum tipo de aflição, desgraça ou abuso causado por pessoas ou circunstâncias sobre as quais não temos controle. Isso é ser vítima. É algo que vem de fora. É o valentão da escola, o chefe furioso, a esposa que agride, o amante que trai, a lei que discrimina, o acidente que o leva para o hospital. Em contrapartida, o complexo de vítima vem de dentro. Ninguém pode fazer sentir-se inferior, a não ser você mesmo. Nós nos tornamos vítimas não pelo que acontece connosco, mas quando escolhemos nos agarrar ao sofrimento. Desenvolvemos uma forma de pensar e de agir que é rígida, culpada, pessimista, presa ao passado, rancorosa, punitiva e sem limites saudáveis. Nós nos tornamos nossos próprios carcereiros quando escolhemos ficar confinados ao papel de vítima.
Quero deixar uma coisa bem clara.
Quando falo de vítimas e sobreviventes, não estou culpando as vítimas, muitas
jamais tiveram chance de se defender. Nunca poderia culpar aqueles que foram
enviados para as câmaras de gás, que morreram de fome ou mesmo os que correram
na direcção da cerca eléctrica de arame farpado. Sofro por todas as pessoas que
são condenadas à violência e à destruição todos os dias. E vivo para orientar
os outros a se fortalecerem diante das adversidades da vida. Também quero dizer
que não existe uma hierarquia do sofrimento. Não há nada que torne a minha dor
maior ou menor que a sua, nenhum gráfico no qual possamos registar a importância
relativa de uma dor sobre a outra. As pessoas me dizem As coisas na minha vida
estão muito difíceis agora, mas não tenho o direito de reclamar, não é Auschwitz. Esse tipo de comparação pode
nos levar a minimizar ou depreciar nosso sofrimento. Ser um sobrevivente exige
aceitação total do que aconteceu. Menosprezar sua dor ou se punir porque se
sente perdido, isolado ou assustado com os desafios da vida, por mais
insignificantes que esses desafios pareçam para os outros, também é escolher
bancar a vítima. Ao fazer isso, não estamos vendo nossas opções. Estamos nos
julgando. Não quero que leia minha história e diga Meu sofrimento é menos
importante. Quero que afirme Se pode fazer isso, eu também posso!.
Certa
manhã eu atendi a duas pacientes, uma logo depois da outra. As duas eram mães
na faixa dos 40 anos. A primeira tinha uma filha hemofílica que estava
morrendo. Ela passou a maior parte da consulta chorando e perguntando como Deus
poderia tirar a vida da sua menina. Sinto muito por aquela mulher que se
dedicou totalmente a cuidar da filha e estava arrasada com a perda iminente.
Ela sentia raiva, sofria e não sabia se conseguiria sobreviver àquela dor». In Edith Eva Eger, A Bailarina de Auschwitz, 2017, Editora
Desassossego, 2018, ISBN 978-989-889-218-8.
Cortesia de EDesassossego/JDACT
JDACT, Edith Eva Eger, Guerra, Literatura, Conhecimento,