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«(…)
O meu João está na oficina. O jantar do meu João. Em o meu João vindo. O meu
João saiu. E orgulhava-se: ter um homem, ter um amigo... Diriam dela as
vizinhas, a que está com o João na oficina, uma ruiva. Via-se aos domingos no
passeio da Estrela com ele, em roda de coreto, fazendo volutas por entre os
soldados de Caçadores, vestido de merino azul, de folho, arregaçado atrás, a
saia branca, um lenço nas mãos suadas e gravatinha encarnada, de borlas. E dali
a um ano, quem sabe, broche de ouro, de moeda! Os pequenos é que tinham de ser
o diabo, ranhosos, cheios de birras, cuecas vestidas, cuecas amareladas, de
rastos, fazendo galos nas testas. Deixá-los! Também as outras se aguentavam:
ora! Mas um loiro, um loiro; que bom! Sempre tinha dito, Deus não me mate sem
um loiro. Às vezes, ao acordar, na moleza lassa do corpo tépido e aconchegado,
espreguiçava-se pensando: ai! Um loiro...
E
lembrava as primeiras linhas do pescoço do aprendiz, linhas fortes e firmemente
contornadas, tons rosa no sanguíneo da epiderme, pequeninas espirais de
cabelinhos louros, de um macio quente e provocante. E depois a sua imaginação,
no delírio, na incoerência, prolongava nitidamente essas linhas,
harmonizando-as, moldando-as, curvas suaves e veludíneas, cheias de saúde,
aqueles brancos braços hercúleos e sem um pêlo, que lhe via na oficina, um
peito amplo, cheio e poderoso, em que se sentissem vagas ondulações viris de
seios, altas pernas nervosas, esculturais, direitas. E diante dela surgia
aquele corpo lutador, de atleta, grandes traços magistrais e simples, de um pureza
de academia. E penetrava-se da cor da pele, fresca e clara, sob que se sentiam
correr ímpetos de sangue rico, jovem, virginal, fremente. Tomá-lo-ia pelos
ombros, redondos como os de uma estátua, e erguida nos bicos dos pés, como era
baixa, dar-lhe-ia pequenos beijos furiosos na boca, sorvendo o seu hálito,
estrangulando-lhe os arquejos, dominando-o e confundindo a sua na alma dele.
Seria
assim eternamente, sem nunca se fatigar, e no alongamento das noites de
Inverno, como grandes coroas que se rezam, deixariam cair as horas no silêncio.
No turbilhão dos seus devaneios sucediam-se rápidas as cenas, vibrantes como kolpodes
que tumultuam na fermentação. Quereria a vida das vizinhas, agitações
constantes da negociação dos corpos, que transformam a vida em sonho ou
quimera. Via saias de goma arrastando, botinas vermelhas de roseta e tacão
alto, os altos penteados característicos. As caras angulosas com manchas
vinolentas sorriam para ela, deitando línguas negras de fora. E sem explicar
porquê, como um ritmo original, ouvia as pancadas de uma enxada na terra do
cemitério. Gelava-se. Era o pai que estava abrindo sepulturas! No fundo
sentia-se infeliz e flutuante numa grande incoerência. Agitada como estava, o
sono fugia-lhe, e as ideias, desviando-se pouco a pouco do primeiro intuito, marchavam já, como raios
que se refrangem, pelo vasto plaino das recordações. Pensava na vida do
cemitério, o amor medonho dos cadáveres, em cuja gélida intimidade vivera
tanto, abrindo mortalhas e erguendo tampas de caixões. Na sua sinceridade
confessava-se horrível, cheia de afinidades com a hiena. Nunca mais iria
exaltar-se perante homens sem vida. Que infâmia! Agora tinha o seu João, carnes
brancas, de semideus. Era feliz então, sentindo na alma aquela irisação de paz
que a perfumava toda como num banho voluptuoso. Ser amada por aquele forte,
apertada e vencida nos seus braços esculturais, parecia-lhe uma ventura, um
milagre, alguma coisa como um sonho febril. Dar-se-ia plenamente e sem
reservas, com uma abundância louca de contactos, frenética e possuída de um
alto desejo de o possuir. A sua vida condensava-se-lhe, colorizada numa
recordação deliciosa, sem compreender no deleite a saciedade, a inanição, o
desprezo de si mesma por fim. No fundo do espelhinho estanhado, a sua figura
iluminada pela vela de sebo tinha uma curva nítida e delicada. Sorriu-se para
mostrar os dentes, pequeninos e miúdos, de gatazinha branca. E dilatou-se num
vasto contentamento interior: era bela, de uma compleição tenuíssima e nervosa,
toda feita de anemias. Com a mão torceu de leve, sobre a cara, uns cabelinhos
ruivos, foi desabotoando, pouco a pouco, o corpete... O seio era branco, assim
descoberto, estreito e apetitoso como uma miniatura, mas incapaz de amamentar
um filho». In Fialho de
Almeida, A Ruiva e Outras Histórias, 1881, Contos, Luso Livros, Nova Forma de
Ler, ISBN 978-972-370-963-6.
Cortesia
de LLivros/JDACT