sexta-feira, 1 de novembro de 2019

A Filha do Papa. Luís Miguel Rocha. «Mas era outra coisa que lhe fazia impressão. Uma certa vassalagem da parte do seu professor, pouco habitual, dava-lhe voltas à barriga. Niklas mirava a batina negra do estranho…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Já terminou a hora da visita. Que desejam?, perguntou com maus modos. A identificação visual que os rotulava como padres não influenciou o porteiro. Era o que mais via todos os dias ali e por toda a cidade. Luka não perdeu tempo a tentar cair nas graças dele. Enfiou Niklas pela abertura, desviando o homem de idade, e seguiu-o sem pronunciar uma única palavra. Façam de conta que estão em vossa casa, resmungou o porteiro. Atropelem-me à vontade que eu não sou filho de Deus. A idade não lhe retirara o sarcasmo. Luka e Niklas não prestaram grande atenção ao local escolhido por Puccini para protagonizar o primeiro acto da ópera Tosca, embora nunca ali tivesse sido apresentada, ou pelos Piccolomini para albergar dois antepassados, Pio II e III, para a eternidade. Nem sequer admiraram a segunda maior cúpula do mundo, projectada por Carlos Maderno, o mesmo que fora nomeado arquitecto principal da Basílica de São Pedro, a pouco mais de dois quilómetros dali. Tinham outras prioridades. Encontraram-no na parte direita do transepto, joelhos dobrados, mãos sobre o rosto, lábios a sibilar uma ladainha silenciosa ou um pedido pessoal a San Andrea Avellino, o protector das causas imprevistas, a quem era dedicada a capela lateral. Se sentiu os passos deles não o demonstrou. Prosseguiu a oração mais alguns minutos.
Luka tornou a pousar a mão protectora sobre o ombro de Niklas e levou o dedo indicador aos lábios a pedir silêncio. Do homem de idade que lhes abriu a porta não havia sinal. Talvez estivesse a ver na televisão a sua amada AS Roma a jogar contra o Inter. Já tivera a sua dose diária de crentes e turistas. Niklas estava tenso. Fitava o homem que rezava. Estrutura semelhante à de Luka, porte atlético, talvez a mesma idade. Uma batina de monsenhor com faixa violácea. Gostava de ser assim quando tivesse a idade deles. Uma gota de suor formou-se num dos lados da testa. A mão paternal de Luka funcionava, duplamente, como um calmante empurrado por uma chávena de café forte. Por um lado, estava ciente de que o clérigo lhe queria bem. Eram conterrâneos, falavam a mesma língua, o que era bom, ainda que Niklas fosse de Munique e Luka de Nuremberga. Niklas nunca fora a Nuremberga e detestava que Luka conhecesse Munique melhor do que ele. Por outro lado, era um professor demasiado exigente e inflexível. Neste momento, preferia esse lado implacável do Bávaro. Mas não o estava a encontrar.
Foste seguido?, perguntou o homem que acabara de fazer o sinal da cruz e se libertava do peso oratório para se virar para eles. Provavelmente, respondeu Luka, sabendo que a pergunta só podia ser para si. Niklas estranhou a pergunta e ainda mais a resposta. O homem levantou-se e fitou o jovem durante alguns instantes. Olhos frios e sedutores ao mesmo tempo. Deus e o Demónio num só. Inspeccionou-o da ponta dos sapatos aos fios louros do cabelo. Niklas sentia-se desconfortável. É ele?, perguntou o homem a Luka. Niklas Grübbe, apresentou Luka, dando-lhe uma palmada nas costas que o fez dar um passo em frente. Meu aluno no Colégio Germânico. Filho do… O homem ergueu a mão impedindo que o alemão continuasse. O vozeirão de Luka tinha menos força perante aquele homem. Era como se o desconhecido fosse superior. Talvez fosse. Em alguns casos as patentes da igreja não estão tão à vista como no exército.
Mas era outra coisa que lhe fazia impressão. Uma certa vassalagem da parte do seu professor, pouco habitual, dava-lhe voltas à barriga. Niklas mirava a batina negra do estranho que não se apresentara. Aqueles olhos frios e sedutores continuavam a avaliá-lo como se se tratasse de uma mercadoria. Conta-lhe, pediu Luka a Niklas. Aqui não, proferiu o desconhecido. Aproximou-se dos dois alemães e olhou para a nave. Vazia. Havia um corredor central, livre, ladeado por dezenas de bancos de plástico virados para o altar-mor. Vamos arriscar. Sigam-me, indicou o estranho de batina. Não era um pedido.
Niklas seguia entre Luka e o outro padre que liderava. Não estava a gostar do rumo dos acontecimentos. Sentia-se nervoso e com medo, e aqueles dois padres eram a razão do desconforto. Muito secretismo, poucas palavras. Que se estava a passar? Tomazzo, chamou o padre que ia à frente. Não houve resposta. Tomazzo, tornou a chamar. A mesma resposta. Quem é o Tomazzo?, perguntou Luka. O velho simpático que nos abriu a porta. Foi então que o viu, em cima, na tribuna, junto ao órgão de tubos. Estático, debruçado sobre a balaustrada, inanimado. Por aqui, gritou o da frente, empurrando Niklas com tanta força que este foi embater num confessionário que estava encostado a uma coluna. Luka atirou-se para os bancos do lado oposto. O jovem padre, completamente em pânico, tentou levantar-se, desorientado. O estranho puxou-o para baixo e colou-o à parede. Escudavam-se na parede lateral do confessionário». In Luís Miguel Rocha, A Filha do Papa, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-411-2.

Cortesia de PEditora/JDACT