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«(…) A face sempre rosada de
Dulce perdera a cor e a pele o brilho. Olheiras profundas rodeavam os olhos
normalmente vivaços. A condessa apiedou-se da amiga de toda a vida. Nunca se
haviam separado desde a infância, forte era a teia de solidariedade
linhagística que as unia. Auxiliara-a no vestir, fizera-lhe companhia nos
passeios, nas distrações e dormira na sua alcova até que se convertera em
mulher do infante Sancho, agora sucessor de Afonso Henriques, fundador do reino
de Portugal. Acompanhara-a, por isso, desde Saragoça, integrada no seu séquito
para a servir, garantindo o seu bem-estar, a sua integridade física e moral. Tantos
anos de convivência haviam-nas transformado em confidentes: era a mais íntima
das aias da rainha. Descansai a vossa mente. Desta vez nada vos falhou,
acrescentou a condessa. A vossa boca não saboreou nem ácido, nem amargo, apenas
comida quente e seca para alimentar um feto macho, sorriu, enquanto compunha a
dobra do lençol de linho. Fiz tudo..., tudo..., a soberana pareceu animar-se. E
terá uma boca perfeita, porque não comi uma só cabeça de peixe, que tanto
aprecio.
No final da frase, uma crispação
dolorosa obrigou-a a contorcer-se de novo. Petronila aproximou-se e aconselhou:
senhora, deveis chamar agora o vosso confessor. Daqui a pouco não haverá tempo.
A rainha condescendeu. A parteira real sabia o que fazia. A sua maior habilidade
consistia em virar uma criança dentro do útero materno, caso não estivesse na
posição correcta para nascer. E estava acima de qualquer suspeita, pois jurara
sobre a Bíblia nunca se apoderar do cordão umbilical ou da placenta, muito
requisitados no mercado da bruxaria. Um monge de faces rubicundas deu entrada
na alcova régia. O seu hábito negro, de camisa de lã e escapulário, caía largo,
disfarçando o ventre inchado pelos profanos prazeres da mesa. Era dom Paio, o confessor.
Carregava na mão direita um crucifixo e na esquerda um pequeno vaso de vidro
contendo o azeite sagrado da santa unção. As lágrimas assomaram em força aos
olhos de dona Dulce. Os lábios dela haviam-se transformado num flozinho de tão
cerrados para iludir a dor, uma linha rosa-pálido acima do queixo. Contudo, não
chorava pelo sofrimento físico, mas pelo da alma. Enquanto dom Paio atravessava
o espaço, no seu passo pesado e lento, embora sem ruído, ela relanceava o olhar
pelas numerosas imagens de Nossa Senhora mãe, penduradas nas paredes à sua
volta, pelos símbolos e relíquias sagrados colocados sobre as arcas. Tudo fora
sabiamente disposto para a proteger. Mas naquele momento temia a morte. Tivera
consciência de que poderia não sobreviver, e isso enchera-a de tristeza. Como
que adivinhando tão tenebrosos pensamentos, o beneditino balbuciou-lhe, quase
num sussurro: minha senhora! Então, então... Tanta dor! Para quê tanta dor?!, lamuriou-se
a soberana. É a dor do pecado original. É o preço da falha de Eva no Jardim do
Éden, enfatizou o clérigo, transformando o sofrimento em punição pelo prazer
proibido às mulheres no acto reprodutor. A rainha revoltou-se: e porque tenho
de o pagar de todas as vezes? Porque o tivestes também de todas elas! Logo
serenou, arrependida: dom Paio..., tenho medo... Não há razão para tal. O coral
que trazeis ao pescoço basta para afugentar o pânico, frisou o religioso,
enquanto retirava do alforge um pequeno pedaço de metal. Mas segurai este íman
com firmeza na vossa mão direita. Agarrai-o bem, que vos dará toda a força de
que precisais.
Ah! O vosso amuleto... Não me
deixeis morrer em pecado, pediu a parturiente. Vós não tendes pecados…, e não
morrereis. Mas tenho de fazer isto. Alguma coisa importante que queirais
dizer-me? E o presbítero aproximou o ouvido dos lábios reais, esperando a confissão.
Nada..., além do que já sabeis. Que crimes podem ser os meus..., aqui fechada
há tantos meses?, lamentou-se». In Maria Antonieta Costa, A Maldição de
Afonso II, 2019, Clube do Autor, 2019, ISBN 978-989-724-483-4.
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