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«(…) Dom Paio acenou, compreensivo,
e iniciou a Sacram Unctionem Infirmorum (Sacra Unção dos Enfermos). O latim
entaramelava-se-lhe enquanto recitava o ritual, ungindo-a sobre os olhos: per
istam sanctam unctionem et suam piissimam misericordiam indulgeat tibi Dominus
quidquid per auditum deliquisti. Amen. (Por esta santa unção e pela sua
piíssima misericórdia, o senhor vos perdoe todos os pecados cometidos pelo que
vistes. Amém)
Dona Dulce retorcia-se,
evidenciando que as contracções eram agora quase consecutivas. Não obstante, o
clérigo repetiu a fórmula por mais cinco vezes ungindo os ouvidos, o nariz, a
boca, as mãos e os pés, partes do corpo através das quais se poderia tomar
contacto com o pecado. Deixai-a, por favor, pediu dona Toda. Está na hora! O
monge benzeu a rainha mais uma vez e apressou-se a sair. De imediato, Petronila
descobriu-a, levantou-lhe a camisa e começou a esfregar-lhe as virilhas com uma
pedra de ónix vermelha, enquanto sabiamente proferia: tal como esta pedra, por
ordem de Deus, brilhou no primeiro anjo, também esta criança se tornará num rei
resplandecente. Depois, abriu-lhe mais as pernas, retirou o cataplasma herbáceo
de sobre a vulva e, segurando a pedra frente à vagina real, continuou: abram-se
as estradas e as portas naquela epifania em que Cristo se tornou humano e Deus.
Que se abram todas as portas do Bem e se fechem as do inferno! E assim esta
criança saia para o mundo viva e sem morte para a sua mãe. Em seguida,
Petronila pegou no cinto que a condessa Toda lhe estendia, colocou a pedra num
encaixe próprio e cingiu-o à volta da dilatada barriga da parturiente. Uma
serviçal fez a rainha beber vinagre com açúcar. É agora! Ajudem-me, ordenou a
parteira. Enquanto duas mulheres traziam o banquinho de parto para os pés da
cama, a condessa e a parteira arrastavam dona Dulce para se sentar nele. Valha-me
Nossa Senhora do Ó!, exclamou a soberana, quase num grito.
Com a mão pequena, humedecida
numa decocção de linhaça e grão-de-bico, Petronila ajudava a dilatação uterina
por entre os rangidos dolorosos da parturiente. Amiga, coragem! Muita força!,
incitava dona Toda. A parteira continuava o exercício manual emitindo sons
estranhos, como se simulasse um animal a parir. A rainha fixava o olhar no dela,
numa aflição cada vez maior, acompanhando com os gemidos os grunhidos da
parteira, qual rito de sortilégio. De súbito, a mulher exclamou: vem aí! Vem
aí!
Ouviu-se um som abafado, algo
como uma pedra que cai sobre uma almofada. E Petronila retirou as mãos de sob a
abertura do banco, mostrando a cabeça do recém-nascido. Um silêncio profundo
reinou na alcova, como se estivessem num túmulo. É homem?, esganiçou-se a
rainha, numa precipitação que ultrapassava a vontade de saber se estava vivo. Petronila
estendeu o cordão umbilical, calculou que ficasse com uns bons quatro dedos
para assegurar uma virilidade robusta, cortou-o e deu-lhe um nó. Levantou a
criança de cabeça virada para baixo, presa pelas canelas, e bateu-lhe nas
nádegas. Ouviram-se os primeiros vagidos. Depois, rodou-a de frente para a mãe
e proferiu, radiante: sim. É homem e está vivo!
Desamparada, Dulce caiu para
trás, batendo com as costas na trave da cama. O alívio e a felicidade
suplantavam qualquer dor. A aia segurou-a, abraçando-a, esfuziante. Ambas
choravam de júbilo. Avisem dom Sancho, recompôs-se a soberana. Por favor, vão avisar
o rei.
Afortunadamente, o monarca
encontrava-se no Paço Real de Coimbra para gozar aquela bênção. Regressara de
uma incursão pelas terras do Sul, onde Abu Yusuf Ya'Qub Al-Mansur ameaçava
apoderar-se dos importantes castelos de Almada, Alcácer e Palmela. Esperando
assegurar uma defesa mais eficaz daquelas possessões, o soberano decidira
atribuir essas fortificações e os seus domínios à Ordem Militar de Santiago,
pelo que se reunira com os seus juristas, preparando a redacção dos documentos
de doação.
Calma! O rei não foge!, disse a
condessa. Esperai pelo que Petronila tem a dizer». In Maria Antonieta Costa, A
Maldição de Afonso II, 2019, Clube do Autor, 2019, ISBN 978-989-724-483-4.
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