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O
Naufrágio
«(…)Forte
de Monserrate, São Salvador da Baía, cinco de Fevereiro de mil seiscentos e cinquenta
e sete. São dadas nove. Na mudez desta varanda a sombra e o sofrimento. Morre com
o dia o vento, o céu estende a garra dos últimos laivos cor de púrpura e a noite
espreguiça-se como mulher com cio. Súbito, em festa, fere a quietação e endoidece
o batuque e a dança lasciva desta gente negra que, entre sapateados e palmas, saracoteia
as ancas e ondula o baixo-ventre. Matéria medíocre para o molde sublime de um soneto?
Só poderia dar em mera catorzada, mas não faltaria quem a apreciasse. Para asno
a palha é canja de galinha, perdoe-me a gente honrada. Despertam-se-me os sentidos,
acirram-se-me os desejos. Mulatchinha visquenta meu ai-me-acuda dengosa, não
querzinho mi deixá abafar nos teus braço minhas dor?... Minha Nossa! Cadê seu tino,
moço? Tira a mão. E a tua namorada, a menininha da casa grande dos Cavalcanti?...
Meneia para mim teu corpo, mulatinha, ondula teus bracinhos, estremece endiabrada
tua bunda, teu sexo, ao acento da batucada, catrapã, catrapã, catrapã...
Assim se entrechocam no meu vário
sentimento a dor e a ironia e os apetites da carne mortificada. Nesta cidade, são
as casas rodeadas de pomares coloridos e perfumados, de tamareiras, laranjeiras,
limoeiros, figueiras-de-adão, romãzeiras, bananeiras, de fazer crescer água na boca.
Como haste de mulatinha, gingam leves à brisa mole os coqueirais, respiram lentos
leques de palmeirais. Cruza-se nas ruas a confusão de raças, índios de Itaparica,
do Recôncavo, tupinambás, negros da Angola, brancos. Misturam-se as sotainas
dos frades, o preto, o castanho, o alvo, de jesuítas, beneditinos, carmelitas, observantes,
com o grito das saias e blusas garridas das baianas. Calados a tais desoras os moinhos
do açúcar, o suor do tabaco e do algodão, o burburinho dos mercadores. Beleza de
ilhotas ensonadas à entrada do golfo, vegetação farta de palmares, pastagens
gulosas de bois, cavalos, porcos.
A minha paisagem interior não se casa
com toda esta alegria espontânea da natureza e das gentes. Não será de estranhar
que o meu pendor me leve a calar tamanha maravilha. Escrevo de outro mundo,
melhor, quase do outro mundo, que morto está quem como eu, no desterro, tem
entre si e a pátria os imensos mares que dividem América da Europa, os silêncios
dos anos, a orfandade de família, de amigos, de liberdade, de justiça. Prefazem-se
hoje trinta e dois anos. Estomagado com a vida, tinha-me alistado na Companhia dos
Aventureiros, como soldado de infantaria, e embarcado em Lisboa na armada encarregada
de defender a nossa costa e sair a esperar as naus, que, pelo começo do Outono,
de ordinário demandam a altura de Lisboa, vindas do Brasil e da Índia. No ar a ameaça
de ataque iminente de piratas, os mares encapelados de corsários ingleses, mouros
e turcos, franceses e holandeses. Andava eu nos dezassete anos e a alma tinha-a
despedaçada, naquele Setembro de seiscentos e vinte e seis. E, a reavivar-me a dilaceração,
ao chegar à ribeira de Lisboa, para me embarcar na capitana, encontrei-me com o
tio de Branca de Vilhena. Não, não aquele que ia casar-se com ela. Este era outro
e meu amigo. António Gonçalves Câmara também vinha a embarcar-se. Se me a alma sangrava,
mais dolorosas, com este encontro, me pungiram as lembranças da felicidade
perdida...
Priminho, diz-me, tão novo te entregas
às incertezas do mar? Tio-avô de Branca e meu primo em já nem sei que grau, era
um homem robusto e experimentado oficial da nossa armada. Senhor meu primo..., ia
eu a responder, interdito pelas magoadas recordações. Deve ter entendido o que
me ia na alma, que atalhou: eu sei, eu sei..., e, abraçando-me fortemente: boa viagem.
Boa viagem, murmurei, mal suspeitando que, subindo eu à capitana e vendo-o a ele
embarcar-se no galeão São Joseph, era aquela a derradeira despedida». In Fernando
Campos, O Prisioneiro da Torre Velha, Quare?, 2003, Difel SA, 2003, ISBN
972-290-669-0.
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