domingo, 17 de novembro de 2019

Papas. Imperadores e Hereges na Idade Média. José D’Assunção Barros. «À parte estas origens, deve-se ter em vista que o significado da palavra heresia foi adquirindo novos matizes com os desenvolvimentos medievais»

jdact e wikipedia

Heresias na Idade Média. Considerações sobre as fontes e discussão historiográfica
«(…) Heresias, na sua origem, eram divergências que se estabeleceram no próprio seio do cristianismo por oposição a um pensamento eclesiástico que tivera sucesso em se fazer considerar ortodoxo. A palavra ortodoxia, neste caso, estará em referência à ideia de um caminho recto associado a um pensamento fundador original, no caso do cristianismo a um pretenso pensamento que derivaria do Cristo e de seus apóstolos, bem como dos textos bíblicos naquelas das suas interpretações que se queriam considerar as únicas corretas. Desde já, será preciso pontuar que, seja no âmbito das heresias do mundo antigo e da Alta Idade Média, ainda marcadas por serem essencialmente divergências de nível teológico, seja no âmbito das heresias que surgem na Idade Média Central e posteriormente na Baixa Idade Média, estas últimas por vezes já prenunciando a Reforma Protestante do século XVI, a verdade é que em todos estes casos hereges e ortodoxos, conforme sejam chamados de acordo com o jogo dos poderes de nomear, sempre acreditaram tanto uns como outros serem os verdadeiros defensores da verdade da fé. Ou, para falar nos termos propostos por Duby na conferência de encerramento do congresso de historiadores sobre Heresias e Sociedades realizado em Rougement, em 1968, a questão é que todo o herético tornou-se tal por decisão das autoridades ortodoxas. Ele é antes de tudo um herético aos olhos dos outros. O reconhecimento deste ponto, conforme veremos, deve constituir um primeiro cuidado para o estudo das heresias como fenómeno histórico e social.
Dentro desta perspectiva, para considerar de início a história mais remota das heresias, vale lembrar que a partir do final do século II as heresias começam a ser catalogadas por aqueles que conseguiram fazer prevalecer seus posicionamentos nestes séculos iniciais de formação da Igreja Cristã, tanto na sua vertente oriental como ocidental. No século V, já teremos um texto importante de Santo Agostinho denominado De heresibus, que a certa altura lista nada mais nada menos que 88 heresias, transmitindo esta listagem para períodos mais avançados da Idade Média. Do mesmo modo, Santo Isidoro enumera nas Etimologias, escritas no século VII, 70 heresias. Isto nos dá uma ideia do gesto de arbitrariedade que de algum modo pauta a intenção de classificar pensamentos heréticos que se desviam da ortodoxia, isto é, do pensamento que pretensamente descenderia em linha recta do pensamento de Cristo ou dos primeiros Padres da Igreja conforme as autoridades eclesiásticas dominantes.
À parte estas origens, deve-se ter em vista que o significado da palavra heresia foi adquirindo novos matizes com os desenvolvimentos medievais. Háiresis, em grego, significava escolha, partido tomado, mas também o acto de pegar. Para os teólogos, uma metáfora se produzia aqui em alusão ao gesto de Adão e Eva que, segundo o Antigo Testamento, estenderam a mão para pegar o fruto proibido e com isso inauguraram um pensamento discordante em relação a Deus. Heresia corresponderia então, para os primeiros Padres da Igreja e os seus dignitários posteriores, a esta visão particular e discordante. Assim, de uma palavra que no grego original poderia significar a acentuação de um aspecto particular da verdade, passava-se no cristianismo primitivo a um sentido em que heresia se apresentava como negação da verdade original e aceita, ou como pregação de um evangelho diferente daquele que era divulgado pelas verdades apostólicas». In José D’Assunção Barros, Papas, Imperadores e Hereges na Idade Média, Editora Vozes, 2012, ISBN 978-853-264-454-1.

Cortesia EVozes/JDACT