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«Hoje
tive uma boa notícia. Como é habitual desde que há quase meio ano me foi
diagnosticada uma doença fatal a aproximar-se da fase terminal, esta manhã fui
ao Hospital Conde de São Januário para o tratamento e as análises do costume.
Tiraram-me sangue, fizeram-me uma TAC, meteram-me numa máquina para me submeter
a uma ressonância magnética, injectaram-me as drogas da terapia…, enfim,
fizeram o que sempre fazem quando lá tenho de ir. Os procedimentos
prolongaram-se por toda a manhã. Depois, e apesar do enjoo, desci a colina da
Guia para almoçar no Clube Militar e, pelas três da tarde, subi de novo ao hospital
para a consulta que tinha marcada com o doutor Évora. Confesso que esta
consulta constitui sempre para mim um momento de grande tensão e nervosismo,
uma vez que é o instante em que me é revelada a evolução da doença. As
novidades raramente são positivas, pelo que, não me importo de o reconhecer,
entro sempre naquele gabinete com suores frios a percorrerem-me o corpo e as
pernas tão fracas e a tremerem tanto que tenho até a impressão de que o meu
tronco não está assente em pernas, mas em esparguete cozido. Desta feita, porém,
algo de novo aconteceu.
Sabe uma coisa curiosa?, observou
o médico enquanto examinava os resultados das análises, da ressonância magnética
e da TAC com uma expressão mais positiva do que era habitual. Creio que a
progressão da doença abrandou. Depois de passar meses a fio a ouvir más notícias
sempre que ali me sentava, foi a primeira vez que as palavras dele realmente me
animaram. A sério, doutor?, admirei-me, o peito de repente desanuviado, a
esperança a incendiar-me o coração apesar de a cabeça me recomendar prudência.
Isso quer dizer…, quer dizer o quê? O médico indicou uma mancha visível na
ressonância magnética. Está a ver aqui? Pegou noutra imagem, a da ressonância
que eu havia feito no mês passado, e pô-las lado a lado, a actual e a anterior.
Agora compare. Olhei para uma e para a outra e a sombra da desilusão
perpassou-me no espírito. Aumentou, doutor… Pois sim, mas aumentou pouco. Não vê?
Admito que os meus conhecimentos nesta área são nulos, ou andam lá perto, pois
não consegui perceber onde via ele razões para o menor dos optimismos.
Eu…, confesso que não, balbuciei,
o desapontamento já a tomar conta de mim mas apesar de tudo a esperança a
manter ainda acesa a sua muito trémula chama. A mancha cresceu… Mas cresceu
menos do que devia ter crescido! Esforcei-me por ver ali o que ele via, tentei
medir a taxa de crescimento; é verdade que à esquerda parecia quase na mesma,
mas o resto estava indubitavelmente maior. O facto é que, depressa ou devagar,
o mal continuava a espalhar-se. E então, doutor? Não percebe? Isto quer dizer
que o senhor vai viver um pouco mais do que eu pensava… O meu coração deu um
pulo e arregalei os olhos, esperando contra a esperança que a resposta à minha
pergunta seguinte me desse razões para festejar. Quanto tempo mais? O doutor Évora
olhou-me com uma expressão que tenho dificuldade em definir. Talvez mais seis
meses. Quase dei um salto de alegria na cadeira. Eu sei que, apresentada a
coisa desta maneira, a minha reacção pode parecer exagerada. No fim de contas
este anúncio significa que morrerei daqui a sete meses, e sete meses não são
nada numa vida. É como se fosse já depois de amanhã. Contudo, ponha-se por
favor no meu lugar.
Há cinco meses este mesmo médico
diagnosticou-me uma doença a entrar na fase terminal e deu-me então seis meses
de vida. Cinco desses meses já se esgotaram, só me resta um. Pode imaginar o
que uma situação destas representa na cabeça de uma pessoa? Acha que é possível
ser-nos passada uma sentença de morte sem que queimemos o dia a pensar nela e a
fazer contas ao tempo cada vez mais diminuto que nos resta? Não há quase
momento em que, estando acordado, não pense na minha morte iminente.
Contabilizo os dias, as horas e até os minutos; o assunto tornou-se uma verdadeira
obsessão, mórbida é certo, mas que não tenho modo de evitar ou controlar. E
agora, quando pelas minhas contas já só me restam uns trinta dias, eis que o mesmo
médico, depois de mais uma vez me vasculhar nas entranhas, chega à conclusão de
que tenho afinal sete vezes mais tempo de vida do que inicialmente se pensava.
Ou seja, em vez de um mês, sobram-me ainda sete. Será que o significado de um
anúncio destes pode ser compreendido em toda a sua plenitude? A minha vida será
sete vezes mais longa do que eu esperava! Sete vezes! Não é isso motivo mais do
que suficiente para celebrar?
Saí do hospital leve como uma
flor, como se o imenso peso que a morte me carregara sobre os ombros tivesse
sido subitamente levantado, e ia tão ligeiro e feliz que até dancei no caminho
para casa; parecia o garoto que fui quando no Liceu Infante D. Henrique
arranquei um beijo à Constança, o primeiro que dei a uma garota. Repito que
tenho a consciência de que sete meses de vida não são nada, parece evidente,
mas acaba por ser muito mais do que ainda esta manhã me atrevia a esperar. Claro
que, como qualquer pessoa a quem um médico anuncia uma doença tão terrível como
esta, vivo na quase permanente esperança de um restabelecimento miraculoso da
minha saúde. Por vezes, quando me ponho a sonhar acordado, imagino-me sentado
no gabinete do doutor Évora, depois de mais uma infindável sessão de exames e
tratamentos, a ouvi-lo anunciar-me a novidade maravilhosa». In José
Rodrigues dos Santos, O Pavilhão Púrpura, Gradiva, 2016, ISBN
978-989-616-709-7.
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