terça-feira, 12 de novembro de 2019

A Obra Poética. Dom Francisco Manuel de Melo. Pedro Serra. «Até um livro me dizem que saiu agora que chamam Hora de Todos, que, com galantaria digna de seu autor, se esmera muito em provar, com discursos e exemplos, esta verdade»

jdact

Apólogos Dialogais e diálogos alegóricos
«(…) Os Apólogos Dialogais, de que conservamos quatro completos, Os Relógios Falantes, O Escritório Avarento, A Visita das Fontes e O Hospital das Letras, o esboço de um outro, A Feira dos Anexins, e o indício de que um sexto terá ficado por realizar, O Cabido dos Coches, não foram editados em vida de dom Francisco Manuel Melo. A editio princeps dos quatro diálogos imaginários data da centúria de setecentos e só nos finais do século passado se deu a conhecer A Feira dos Anexins. Não são excepções, a este respeito, no conjunto da vastíssima obra do autor da farsa O Fidalgo Aprendiz. Seja como for, isso não significa que os diferentes textos, em conjunto e em separado, não tivessem circulado com feliz fortuna. Quando Francisco Manuel Melo escreve os Apólogos tinha já atrás de si obras sobremaneira importantes no âmbito do barroco peninsular. Em castelhano, escrevera a Historia de los movimientos y separación de Catalunya, obra dada à estampa em Lisboa em 1645, com o pseudónimo de Clemente Libertino. É, sem dúvida, o livro que lhe granjeou mais fama em Espanha. Juan Luis Alborg, no capítulo referente ao Barroco da sua conhecida Historia de la literatura española, recorda as palavras encomiásticas de Cayetano Rosell, para quem o texto historiográfico de Francisco Manuel é la joya de más precio que brilla en todo nuestro tesoro histórico e, ainda, el modelo más perfecto de aquel siglo.
O próprio Alborg se pronuncia em termos elogiosos:

Melo, evidentemente, maneja un perfecto castellano y posee extraordinarias dotes para narrar y describir; sus imágenes son tan poderosas como certeras, y lo mismo los personajes que los hechos son definidos con una robusta y gráfica energía que nos parece lo más sobresaliente de la obra.

Em 1650 redige a Carta de Guia de Casados, a sua primeira obra em prosa escrita em português, texto que se destaca da tradição moralística peninsular sobre o casamento, publicando-o por primeira vez em 1651. E, claro está, há que mencionar obrigatoriamente O Fidalgo Aprendiz, escrito à volta de 1646, caso singular no panorama depauperado do teatro português coevo. Três textos que, por si sós, reservam a Francisco Manuel um lugar cimeiro na República das Letras de seiscentos. Contudo, e esta é matéria de consenso, os Apólogos superariam esses conseguimentos, já de si notáveis. Do Hospital das Letras, por exemplo, dirá um Alexandre Herculano que é certamente por todos os títulos o melhor e mais claro testemunho da vasta lição de Francisco Manoel, bem como da clareza do seu juízo em matérias literárias. O Prof. Rodrigues Lapa refere-se à constância do consenso crítico em relação aos Apólogos quando, na apresentação da sua edição de Os Relógios Falantes, afirma serem na opinião da maioria, a sua melhor obra, a que resume na verdade as prendas do seu espírito: a prontidão do chiste, a rica fantasia e a observação moral da vida e dos homens. Para Giacinto Manuppella, um dos mais documentados estudiosos destes textos, são quatro obras-primas, repassadas de imperecível vitalidade artística.
Com Os Apólogos Dialogais, Francisco Manuel insere-se numa tradição de textos cujo modelo português das primeiras décadas do século XVII é a Corte na Aldeia, de Rodrigues Lobo. Por outro lado, é o próprio Francisco a estimular a aproximação comparativa com outros textos peninsulares afins. O nome que imediatamente se nos afigura comparável é o de Francisco Quevedo, de resto amigo e correspondente de Francisco. Em Os Relógios Falantes, a Fonte Velha faz referência a La hora de todos e fortuna con seso do autor espanhol:

Até um livro me dizem que saiu agora que chamam Hora de Todos, que, com galantaria digna de seu autor, se esmera muito em provar, com discursos e exemplos, esta verdade.

Mais ainda, na Dedicatória de A Visita das Fontes, a Cristóvão Soares Abreu, Francisco recordaria uma vez mais o poeta espanhol: neste estado me acolheu esta leve ilusão que agora vos comunico. Não foi sonho, pois não é de juro e herdade que hajam de sonhar todos os dons Franciscos. Sonhou o de Quevedo, porque tinha ou Fama ou Sorte sobre que podia dormir seguro. Mas eu, que há tantos anos que não repouso, mais depressa, de muito desvelado, escreverei, antes que sonhos, dilírios!» In José Pina Martins, A Obra Poética, Dom Francisco Manuel de Melo, Excerto, História e Antologia da Literatura Portuguesa, Século XVII, nº 31, FCG, HALP, 2004, ISSN 1645-5169.

Cortesia da FCG/JDACT