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I
«De tudo que é mais belo queremos
descendência,
Para que assim nunca morra a rosa
da beleza,
Pois se o mais velho com os anos cessa
a existência.
Seu tenro herdeiro a lembrança
mantém acesa.
Mas tu, que a teus próprios olhos
te reduziste,
Nutres tua chama com íntima combustão.
Onde abunda a beleza, uma
carência viste.
Inimigo de ti mesmo, para ti sem compaixão.
Tu que és do mundo juvenil ornamento,
Arauto que anuncia a primaveril beleza,
Em teu próprio botão enterras teu
prazimento,
Generoso avaro, pródigo em tua avareza.
Apieda-te do mundo, para glutão não
seres.
Quando
tu e a campa o que é dele comerdes.
II
Quando quarenta invernos em tua fronte
abrirem
Fundas trincheiras em teu campo
de beleza,
As vistosas vestes juvenis que
agora em ti virem
Serão, então, trapos gastos,
desprezível pobreza.
Ao perguntarem-te onde tua beleza
está.
E o tesouro de teus ardentes dias
jaz.
Dizer que em teus olhos cavos tudo
se achará.
Seria inúteis elogios e vergonha voraz.
O uso da beleza maior louvor receberá.
Se pudesses responder: este belo filho
meu
Saldará as contas e minha idade desculpará,
Sua beleza prova que é o sucessor
teu.
Isso
seria fazer jovem quem velho se sente.
E
ver o sangue que tens frio correr quente.
III
Olha-te ao espelho e diz ao rosto
que mirares:
São horas de gerares um novo rosto;
Se o seu aspecto jovem tu não
renovares,
Enganas o mundo, à futura mãe
causas desgosto.
Onde está aquela cujo ventre
intocado
Desdenhe o trabalho da tua lavoura?
Ou é tão tolo que tenha desejado
Ser cova de amor-próprio e da geração
vindoura?
Ao ver-te, tua mãe vê-se ao
espelho,
E em ti recorda o doce Abril da juventude.
Assim, tu verás que, apesar de velho
E das rugas, este é o tempo da plenitude.
Mas se viveres decidido a ser
esquecido.
Morre
solteiro, e tua imagem morre contigo».
[…]
In
William Shakespeare, Os Sonetos, 1609, tradução de António Simões e M. Gomes
Torre, Relógio d’Água Editores, 2019, ISBN 978-989-641-926-4.
Cortesia
de Relógiod’ÁguaEditores/JDACT