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O
Naufrágio
«(…) Finalmente, uma quarta-feira
pela manhã, vinte e quatro de Setembro, faz-se à vela a armada. Tanta mocidade,
força de ânimo, confiança de longa vida se embarcam nestes seis poderosos navios!
Comanda-os dom Manuel. Este, em que sigo, é a capitana. Aquele é a almiranta, seu
chefe Antonio Moniz. Além, o galeão São Joseph, que tocou a António Meneses. Mais
além, o galeão Santiago, capitaneado por Gonçalo Sousa. A seguir o galeão São Felipe,
Que tem por cabo a Manuel Dias Andrade. Por último, a urca Santa Isabel, que governa
Cristóvão Cabral. À procura de que rosto, de que gesto, de que adeus ou até-à-vista
prescrutam os meus olhos a multidão que acena lenços chorosos? Não quis eu que minha
mãe nem minha irmã viessem à despedida? Saímos a barra e fazemo-nos ao largo. Da
amurada, olho longamente a embocadura do Tejo a desaparecer. Àquela hora, talvez…,
o sim na igreja, a boda alegre e, logo à noite..., meu salgueiro em flor, murmúrio
do chafariz, andorinhas a aquietar-se nos ninhos... Mar e céu, solidão, por
confidente o papel, buscar o esquecimento na acção perigosa...
A costa já mal se distingue, a
serra de Sintra e cinza anilada a esfumar-se...
Ficava-nos também na amada terra
O coração, que as mágoas lá
deixavam…
Ouviu-me o general? Um braço forte
pousa-me no ombro: magoado como ele?
Sorrio, engolindo as lágrimas na garganta,
soldado não chora, em silêncio alongando a vista o mais que posso à terra. Manuel
afasta-se respeitando a minha despedida. Depois acordo ao sentir-lhe as palavras
junto de capelão-mor: desaparecido el-rei Sebastião I, por alguns anos ainda se
manteve o costume. Os nossos jovens fidalgos, para poderem cingir a espada,
passavam a Africa…, ...provavam a valentia..., ...e eram arnados cavaleiros.
Transferiram depois os reis estranhos estas cerimónias para as armadas da costa…
...comutados os três anos de Africa em cinco de embarcados. Franciscano alegre frei
Paulo Estrela, dos seus trinta anos, olhos vivos, cabelos e barbas aloirados, as
mãos muito brancas e magras, a voz macia mas estranhamente grave em corpo tão franzino.
Durante a viagem, tive ocasião de com ele estreitar amizade. Afastava-se agora com
o general pelo convés adiante. Grande é a faina a bordo, mestre Joaquim grita ordens,
correm os moços esforçados. Segundo a ordenança, procura-se conservar a navegação
cinquenta léguas apartada da costa e bordejar até vinte de Outubro. Se as naus
da Índia não aparecerem até esse tempo, o governo de Portugal disporá o que for
mister.
Terça-feira, trinta de Setembro,
rezava o diário de bordo. Navegávamos les-sueste, por todo o quarto de alva, ou
modorra como lhe chama a gente rude, que é a terceira vigia da noite. Ao romper
da manhã. Um escudeiro fidalgo vem postar-se a meu lado na amurada: é a tua
primeira vez? É, olho-o como a interrogar-me quem seja. Pedro de Góis, para te servir.
Francisco Manuel. Muita honra. Nos Aventureiros? Sim. E tu?» In Fernando
Campos, O Prisioneiro da Torre Velha, Quare?, 2003, Difel SA, 2003, ISBN
972-290-669-0.
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