sexta-feira, 1 de novembro de 2019

A Filha do Papa. Luís Miguel Rocha. «E se tivesse sido abençoado com o dom da fala, perguntaria ao jovem padre alemão porque razão entregara a sua vida a Deus»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Queres morrer?, recriminou-o num alemão polido. Não!, respondeu Niklas, ignorando a obviedade da resposta. Já nem na casa de Deus se está seguro, ironizou Luka com um sorriso. Tudo ficou em suspenso durante alguns minutos. Niklas arquejava com os nervos e não reparava na calma dos dois padres que o acompanhavam, mas também quem o faria perante tal situação? Consegues ver alguma coisa?, perguntou o desconhecido. Luka fez que não com a cabeça. O desconhecido, que estava ao lado de Niklas, enfiou a mão dentro da batina e retirou uma Beretta Cougar 8000 de 9 mm. Niklas sentiu os cabelos loiros eriçarem-se de medo. O coração ia rebentar, tal era a força com que pulsava. O pior foi quando viu o padre Luka, professor de teologia e seu mentor no Collegium Germanicum fazer o mesmo. Se percebesse alguma coisa de armas saberia que era uma 85FS Cheetah. Niklas estava a ponto de não segurar a bexiga. Quem são vocês?, conseguiu perguntar, numa voz, simultaneamente, de pavor e ultraje. O padre desconhecido olhou para ele muito calma e cautelosamente, e avançou pela frente do confessionário. Nesse preciso momento tombou com a cabeça desfeita para o lado esquerdo, derrubando algumas cadeiras. Segundos depois, foi Luka que caiu para trás e embateu numa coluna da capela de Nossa Senhora do Sagrado Coração. Os olhos abertos a mirar o vazio, esvaídos de vida, a cara salpicada de sangue. Dois tiros na testa. O jovem padre não conseguia acreditar no que estava a acontecer.
A porta do confessionário abriu-se com violência, o que fez Niklas dar um salto de pavor. Não saberia dizer se gritou ou não. Do interior da estrutura de madeira saiu um homem que segurava uma arma estranha com mira telescópica. Sorriu para Niklas e pegou no telemóvel para enviar uma mensagem. A primeira fase estava concluída. Depois tirou um post-it azul do bolso e colou-o na porta do confessionário. Tirou a luva de uma das mãos para cumprimentar o jovem padre que estava em estado de choque, sem conseguir desviar o olhar dos corpos. Niklas nem se apercebeu da mão forte do homem que estava à sua frente. O Francês sentia-se curioso em relação ao jovem padre alemão. Uma curiosidade que era insubordinação no seu estado mais puro. O Francês era um insubordinado de si próprio, já que não respondia perante mais ninguém. E se tivesse sido abençoado com o dom da fala, perguntaria ao jovem padre alemão porque razão entregara a sua vida a Deus.

Para Jacopo Sebastiani as noites serviam para dormir, excepto ao início da noite de sexta-feira que serviam para cumprir as prerrogativas conjugais com Norma, com quem era casado há mais tempo do que aquele que conseguia lembrar. Era, por isso, uma imbecil anormalidade, segundo palavras dele, ter de se levantar da cama por estarem a tocar à campainha e a bater à porta, incansavelmente. Olhou o relógio da mesa-de-cabeceira e esfregou os olhos para ver se eram mesmo quatro e vinte da madrugada. Raios. Seguramente fora a sonolência que lhe refreara a irritação. Norma ressonava virada para o outro lado. Era o bom que ela tinha. Se um dia um cataclismo varresse o prédio, Deus o livrasse, ou quem quer que fosse a entidade que geria essas preces, não teria de se preocupar em salvá-la. Morreria tranquilamente, na paz do sono revigorante da eternidade. A imbecil anormalidade apresentou-se na forma de um jovem, aparentemente adolescente, que continuou a carregar na campainha mesmo depois de Jacopo ter aberto a porta. Foi ele quem sacudiu a mão do rapaz do botão. O miúdo transpirava e parecia que subira ao quarto andar pelas escadas, por causa da forma como arfava. Jacopo reconheceu-o. Era um dos lacaios da câmara pontifícia, um criado do Papa.
Que queres?, perguntou com maus modos. Não devias estar a dormir ou a rezar ou…? Lá o que fazes à noite…? O rapaz não conseguiu articular uma palavra. Estava ainda a recuperar o fôlego». In Luís Miguel Rocha, A Filha do Papa, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-411-2.

Cortesia de PEditora/JDACT