E assim declaro
que darei, sem encargos, um visto a quem quer que o peça. O meu desejo é mais
estar com Deus contra o Homem do que com o Homem e contra Deus. In
Aristides Sousa Mendes, 1940
«Há uma saga que ainda não foi
contada sobre a Segunda Guerra Mundial: a história de duas irmãs portuguesas,
Olívia e Clarice. Olívia casa-se com um português e vai para o Brasil. Clarice
casa-se com um alemão judeu e vai morar em Antuérpia, na Bélgica. Ambas vivem
felizes, com maridos e filhos, até que a guerra começa e a Bélgica é invadida. Para
escapar da sombra nazi que vai devorando a Europa, a família de Clarice conta
com a ajuda de Aristides Sousa Mendes, o cônsul que salvou milhares de vidas
emitindo vistos para Portugal, em 1940, enquanto actuou em Bordéus, França. A
família recebe o visto mas, ao chegar à fronteira de Portugal, um destino
trágico à espera... Destino que vai mudar e marcar a vida das irmãs para
sempre, por causa de um segredo que só será revelado sessenta anos depois.
O céu cinzento e a chuva fina
escondiam os raios de sol do primeiro dia do novo ano, quase novo milénio. O
mundo não tinha acabado. Um grito ou outro na rua, a cantoria e as risadas na
volta para casa, copos, latas e garrafas de champanhe encostados no meio-fio
eram o máximo da desordem naquele sábado pós-réveillon em Copacabana. Do alto
de seus oitenta e três anos, do alto da sua cobertura, no lugar mais cobiçado
para acompanhar a virada, Olívia sentia-se pequena. Eram seis da manhã e ela não
tinha pregado o olho. Pouco depois das duas da madrugada ela fora para o quarto,
dando o sinal mudo de que era hora de todos partirem. Vinte minutos depois, a
neta entrara no quarto e Olívia manteve os olhos fechados. Instantes depois, o
barulho dos copos recolhidos e o clique da porta foram a senha para que se
levantasse e fosse para a varanda, e ali continuou até o dia amanhecer.
Lembrava-se que, no momento exacto,
quis que o mundo acabasse. O champanhe foi estourado como despedida do ano,
despedida do filho. Beberam à troca de saudações triviais de feliz ano-novo e a
palavras vazias que acompanham os momentos de profunda tristeza. Nos últimos
vinte anos, desde que Olívia se mudara para a cobertura do anexo do hotel mais
glamouroso da cidade, o apartamento vinha sendo o ponto de encontro da família
nos fins de ano. À medida que se aproximava o fim do milénio, cresciam as
expectativas e apostas sobre o réveillon. Olívia jamais pensara que passaria
dos oitenta para ver aquele dia. Muito menos que Luiz Felipe não estaria ali. A
urna com as cinzas descansava sobre o aparador, ao lado da fotografia dele, ainda
bebé, com o pai, António. Em alguns minutos, cumpriria seu último desejo. Avó,
a senhora tem certeza de que quer ir? A pergunta do neto mais velho foi seguida
de silêncio. Ele insistiu: avó, de repente a gente deixa o dia clarear, vamos
de manhã, vai ser mais tranquilo.
Olívia acariciou a urna e
respondeu com um sorriso firme nos lábios. Tom, lembra–se como o seu pai se
negava a ver os fogos aqui de cima? Vinte para a meia-noite e lá ia ele com a
garrafa de champanhe, os copos de plástico... Feliz ano-novo, mãe, que o lugar
deste português é lá em baixo, no mar de gente! Pois é para lá que nós vamos.
Agora! Agora, Olívia permanecia ali, sentada na varanda, no primeiro dia do
ano. O mundo tinha acabado, sim, não é justo ver um filho morrer sem poder
fazer nada. Ela pegou na foto que costumava levar sempre junto ao peito. Olhou,
então, demoradamente, a mulher, o homem, a criança. Nem ouviu o ruído da porta
abrindo, nem os passos leves no tapete. Tita, a neta, que também se chamava Olívia,
entrara devagar. Ela também não tinha pregado o olho a noite toda. Não era a
morte do tio que tirava o sono de Tita, era a morte do sonho. Porque para
algumas mulheres engravidar era tão difícil? Tita perdera o primeiro bebé,
depois o segundo e agora o terceiro. Mantivera a gravidez em segredo já
prevendo o fracasso. Só a avó sabia. Tita precisava contar para ela, precisava
dividir a sua dor, embora soubesse que estava sendo egoísta. A avó acabara de
perder o filho. Ela também». In Luize Valente, Uma Praça em Antuérpia,
2015, Saída de Emergência, colecção A História de Portugal em Romances, 2015,
ISBN 978-989-637-844-8.
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