«Oh,
não comeces já a inquietar-te, queixou-se Kitty. Nos tempos que correm, se uma mulher
se vai preocupar só por não receber carta do marido há quinze dias!... Além disso,
se ele estivesse nalgum lugar interessante, onde houvesse combates a sério, de certeza
que arranjaria maneira de mo fazer saber, em vez de dizer apenas que está algures
em França. Ele há-de estar bem. Estávamos sentadas no quarto do bebé. Eu não tinha
intenção de voltar a entrar lá depois da morte da criança, mas deparei subitamente
com Kitty a introduzir a chave na porta e detive-me a olhar lá para dentro,
para aquele quarto de tecto alto, pintado de branco e de cores claras, tão insuportavelmente
alegre e familiar, e que permanece, em todos os aspectos, como se ainda
houvesse uma criança em casa. Era o primeiro dia bonito de Primavera, e o sol que
atravessava as janelas de ogiva e as cortinas às flores era tão radioso que, noutro
tempo, um punho rechonchudo ter-se-ia decerto erguido para apontar as translúcidas
auréolas dos botões de rosa; o sol projectava grandes charcos de luz no soalho
de cortiça azul e nos fofos tapetes estampados com animais estranhos, e desenhava
raios dançarinos nas paredes pintadas de branco e azul, que teriam sido
contempladas gravemente durante horas e horas. Incidia no cavalinho de baloiço,
que Chris considerara uma prenda adequada para o primeiro aniversário do filho,
revelando toda a beleza da sua superfície sarapintada; apanhava Mary e o seu cordeirinho
na otomana forrada a chita. E no rebordo da lareira, sob a prezada gravura do
tigre a rosnar, em posturas ao mesmo tempo abruptas e relaxadas, como se estivessem
dispostos a divertir o dono com as suas brincadeiras mas não conseguissem impedir-se
de dormitar num dia tão quente, estavam o urso de peluche, o chimpanzé, o cão branco
de lã e o gato preto cujos olhos rolavam. Estava tudo ali, excepto Oliver. Dei meia
volta, para não interromper a visita de Kitty ao seu morto.
Mas ela chamou-me. Jenny, vem cá.
Vou secar o cabelo. E quando olhei de novo vi que o seu cabelo dourado estava caído
sobre os ombros e que ela trazia sobre o vestido um casaco de seda estampado com
botões de rosa. Parecia uma rapariga numa capa de revista, a tal ponto que quase
esperei ver algures no seu corpo uma etiqueta marcando 7 pence. Kitty empurrou
a cadeira de vime da ama do seu lugar junto à cadeira alta, colocando-a em frente
à janela do meio. Venho sempre para aqui depois da Emery me lavar o cabelo; é o
quarto mais soalheiro da casa. Preferia que o Chris não tivesse insistido em conservar
o quarto como está, quando já não há nenhuma hipótese... Sentou-se, atirou o cabeio
sobre as costas da cadeira, para que lhe desse o sol, e estendeu-me a sua escova
de concha de tartaruga. Sê boazinha e escova-me o cabelo. Mas com cuidado, que a
escova prende muito.
Peguei na escova e fui até à
janela, encostando a testa à vidraça e olhando distraidamente a paisagem. Provavelmente
conheceis a beleza daquela vista, pois quando Chris remodelou Baldry Court, ap´pos
o seu casamento, entregou o projecto a uns arquitectos mais atreitos ao olhar conhecedor
do manicuro do que à visão selvagem do artista, e juntos arranjaram maneira de
converter aquele adorado espaço em objecto de infindáveis reportagens fotográficas
para jornais ilustrados». In Rebecca West, O Regresso do Soldado, 1918/1980,
Relógio d’Água, 2009, ISBN 978-989-641-072-8.
Cortesia de Rd’Água/JDACT