Norte
de Portugal. 1916
«(…) Agora, tudo aquilo seria do
filho, ou da filha. Era incrível a esperança que tomava conta do casal. Apesar
de a Alemanha ter declarado guerra a Portugal, e de o Parlamento ter aprovado a
entrada no confronto, Manuel tranquilizava a esposa. Ele não seria convocado,
as batalhas se davam longe do território português e tinham alimentos
suficientes estocados para vários invernos e verões. Josefina acariciava o
rosto dele. Ela amava aquele homem forte, tosco, de mais acção que palavras.
Ele vivia num mundo de regras próprias. O mundo era a quinta. O território de
dentro da casa era chefiado por Josefina, o de fora, por Manuel. Os dois
comandantes respeitavam as fronteiras. Enquanto Josefina temia pelo futuro do
bebé a caminho, por uma guerra recém-declarada, pelos que seriam obrigados a
lutar e a morrer sem convicção, pelos que passariam fome, Manuel amassava as
uvas. Nada poderia quebrar, desestruturar a ordem com que ditava a vida. Se, na
mais improvável das hipóteses, Portugal fosse invadido, ele poria as tropas
alemãs para correr com seu exército de um homem só. Manuel só não estava
preparado para a tragédia que aconteceria em seguida.
Josefina não teve forças para
abrir os olhos, mas esboçou um sorriso e apertou a mão do marido quando ele
levantou da cama ainda com o dia escuro. Manuel acariciou o rosto dela,
beijou-lhe a testa e sorriu de volta. Ela não viu, mas sentiu o sorriso dele, já
estava embalada no sonho. Um sonho daqueles que, a princípio, trazem conforto e
vontade de não voltar. Josefina já não tem mais a barriga, Manuel amassa as
uvas, duas meninas correm pela quinta, correm em direcções opostas. Ela não se
preocupa porque estão ao alcance da vista. O céu é azul, sem nenhuma nuvem. Ela
aproveita ao máximo a sensação de ter todos ali. Subitamente percebe que já é mãe.
Serão as meninas suas filhas? De repente, sente um pingo, seguido de outro.
Corre, mas não há onde se proteger. Os pingos são vermelhos. Os pingos são
vermelhos de sangue. Ela não vê mais as meninas. Manuel espreme as uvas e delas
sai o mesmo vermelho de sangue. Ela grita por Manuel. Grita com toda a força. Josefina
abriu os olhos. O corpo estava encharcado. Tudo vai ficar bem, minha querida. O
doutor está a caminho, disse Manuel, em meio ao abraço.
As palavras saíram sem convicção.
Fora tudo muito rápido. Os gritos no quarto, a correria escada acima, a agonia
de Josefina. O menino, filho da criada que contratara para ajudar a esposa
quando a barriga já atrapalhava os cuidados da casa, brincava entre as
parreiras. Da janela mesmo gritara. Voa até a vila e traz o doutor, é caso de
vida ou morte..., e diz à tua mãe para vir aqui! O garoto partiu em disparada.
Em segundos, a criada estava no quarto. Desapareceu e voltou em seguida
trazendo uma bacia com água e muitos panos. Foi nesse momento que Josefina viu
o sangue. Os pingos do sonho cobriram a cama de vermelho. Ela gritou. Não era
sonho, as meninas desapareceram da sua vista. Tudo ficou subitamente escuro. Josefina
estava pálida, os lábios arroxeados, os olhos fechados. O médico entrou no
quarto e pegou o pulso. Não foi preciso dizer nada. Ela estava morta.
Temos de salvar a criança! O doutor
gritou, enquanto sacava um bisturi da maleta. Não era a primeira cesariana que
fazia, mas nunca antes numa mulher sem vida. Fez o corte longitudinal, rápido e
preciso. Em menos de um minuto, tirou o bebé. Quem pegou a criança foi o
garoto. Manuel já havia deixado o quarto. Não amaria aquela criança. Iria
dar-lhe o seu nome, alimentá-la, educá-la, mas amor era algo que tinha secado
dentro dele. O médico suava frio, as gotas escorriam pela lateral do rosto. Mal
teve tempo de pegar o lenço. Havia outro bebé ali. Assim como a irmã, a segunda
menina soltou o choro forte e alto. A sutura foi feita com todo o cuidado. Por
um breve instante, pareceu-lhe que Josefina sorria.
E assim Clarice e Olívia vieram
ao mundo. Primeiro Olívia, depois Clarice. Ou teria sido primeiro. Clarice e
depois Olívia? Eram apenas as gémeas, chamadas pelas cores das roupas que
usavam. A de amarelo, a de branco. Ganharam nome quando a avó materna, que
morava na cidade da Guarda, na região da Beira Alta, chegou, dois dias depois
do nascimento. Mal teve tempo de chorar a filha única. Dava dó ver as meninas
berrando de fome, aos cuidados de uma criada sem intimidade com a casa. Tinha
arranjado às pressas uma ama-de.leite, mas não era suficiente para os dois
pequeninos seres ávidos de vida. Manuel trancou-se no quarto no momento em que
ouviu o médico gritar que tinha de salvar a criança. Para ele, Josefina é que
tinha de ser salva, era ela que ele amava desde sempre. Filhos eram consequência,
a ordem natural das coisas. Josefina era a escolha, a vida a dois, a vida
eterna. E não uma, mas duas crianças». In Luize Valente, Uma Praça em Antuérpia,
2015, Saída de Emergência, colecção A História de Portugal em Romances, 2015,
ISBN 978-989-637-844-8.
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