quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Uma Praça em Antuérpia Luize Valente. «Josefina estava pálida, os lábios arroxeados, os olhos fechados. O médico entrou no quarto e pegou o pulso. Não foi preciso dizer nada. Ela estava morta»

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Norte de Portugal. 1916
«(…) Agora, tudo aquilo seria do filho, ou da filha. Era incrível a esperança que tomava conta do casal. Apesar de a Alemanha ter declarado guerra a Portugal, e de o Parlamento ter aprovado a entrada no confronto, Manuel tranquilizava a esposa. Ele não seria convocado, as batalhas se davam longe do território português e tinham alimentos suficientes estocados para vários invernos e verões. Josefina acariciava o rosto dele. Ela amava aquele homem forte, tosco, de mais acção que palavras. Ele vivia num mundo de regras próprias. O mundo era a quinta. O território de dentro da casa era chefiado por Josefina, o de fora, por Manuel. Os dois comandantes respeitavam as fronteiras. Enquanto Josefina temia pelo futuro do bebé a caminho, por uma guerra recém-declarada, pelos que seriam obrigados a lutar e a morrer sem convicção, pelos que passariam fome, Manuel amassava as uvas. Nada poderia quebrar, desestruturar a ordem com que ditava a vida. Se, na mais improvável das hipóteses, Portugal fosse invadido, ele poria as tropas alemãs para correr com seu exército de um homem só. Manuel só não estava preparado para a tragédia que aconteceria em seguida.
Josefina não teve forças para abrir os olhos, mas esboçou um sorriso e apertou a mão do marido quando ele levantou da cama ainda com o dia escuro. Manuel acariciou o rosto dela, beijou-lhe a testa e sorriu de volta. Ela não viu, mas sentiu o sorriso dele, já estava embalada no sonho. Um sonho daqueles que, a princípio, trazem conforto e vontade de não voltar. Josefina já não tem mais a barriga, Manuel amassa as uvas, duas meninas correm pela quinta, correm em direcções opostas. Ela não se preocupa porque estão ao alcance da vista. O céu é azul, sem nenhuma nuvem. Ela aproveita ao máximo a sensação de ter todos ali. Subitamente percebe que já é mãe. Serão as meninas suas filhas? De repente, sente um pingo, seguido de outro. Corre, mas não há onde se proteger. Os pingos são vermelhos. Os pingos são vermelhos de sangue. Ela não vê mais as meninas. Manuel espreme as uvas e delas sai o mesmo vermelho de sangue. Ela grita por Manuel. Grita com toda a força. Josefina abriu os olhos. O corpo estava encharcado. Tudo vai ficar bem, minha querida. O doutor está a caminho, disse Manuel, em meio ao abraço.
As palavras saíram sem convicção. Fora tudo muito rápido. Os gritos no quarto, a correria escada acima, a agonia de Josefina. O menino, filho da criada que contratara para ajudar a esposa quando a barriga já atrapalhava os cuidados da casa, brincava entre as parreiras. Da janela mesmo gritara. Voa até a vila e traz o doutor, é caso de vida ou morte..., e diz à tua mãe para vir aqui! O garoto partiu em disparada. Em segundos, a criada estava no quarto. Desapareceu e voltou em seguida trazendo uma bacia com água e muitos panos. Foi nesse momento que Josefina viu o sangue. Os pingos do sonho cobriram a cama de vermelho. Ela gritou. Não era sonho, as meninas desapareceram da sua vista. Tudo ficou subitamente escuro. Josefina estava pálida, os lábios arroxeados, os olhos fechados. O médico entrou no quarto e pegou o pulso. Não foi preciso dizer nada. Ela estava morta.
Temos de salvar a criança! O doutor gritou, enquanto sacava um bisturi da maleta. Não era a primeira cesariana que fazia, mas nunca antes numa mulher sem vida. Fez o corte longitudinal, rápido e preciso. Em menos de um minuto, tirou o bebé. Quem pegou a criança foi o garoto. Manuel já havia deixado o quarto. Não amaria aquela criança. Iria dar-lhe o seu nome, alimentá-la, educá-la, mas amor era algo que tinha secado dentro dele. O médico suava frio, as gotas escorriam pela lateral do rosto. Mal teve tempo de pegar o lenço. Havia outro bebé ali. Assim como a irmã, a segunda menina soltou o choro forte e alto. A sutura foi feita com todo o cuidado. Por um breve instante, pareceu-lhe que Josefina sorria.
E assim Clarice e Olívia vieram ao mundo. Primeiro Olívia, depois Clarice. Ou teria sido primeiro. Clarice e depois Olívia? Eram apenas as gémeas, chamadas pelas cores das roupas que usavam. A de amarelo, a de branco. Ganharam nome quando a avó materna, que morava na cidade da Guarda, na região da Beira Alta, chegou, dois dias depois do nascimento. Mal teve tempo de chorar a filha única. Dava dó ver as meninas berrando de fome, aos cuidados de uma criada sem intimidade com a casa. Tinha arranjado às pressas uma ama-de.leite, mas não era suficiente para os dois pequeninos seres ávidos de vida. Manuel trancou-se no quarto no momento em que ouviu o médico gritar que tinha de salvar a criança. Para ele, Josefina é que tinha de ser salva, era ela que ele amava desde sempre. Filhos eram consequência, a ordem natural das coisas. Josefina era a escolha, a vida a dois, a vida eterna. E não uma, mas duas crianças». In Luize Valente, Uma Praça em Antuérpia, 2015, Saída de Emergência, colecção A História de Portugal em Romances, 2015, ISBN 978-989-637-844-8.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT