terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Uma Praça em Antuérpia. Luize Valente. «António pouco mudara desde que deixara a quinta, quatro anos antes. Talvez uma certa seriedade no olhar, consequência da responsabilidade do trabalho»


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Norte de Portugal. 1933
«(…) Era um daqueles amores que só pareciam possíveis nos livros. António amou Olívia desde o primeiro momento em que a viu. Viu-a ser tirada pelo médico, minutos antes de Clarice. Foi o primeiro a ouvir seu choro, a segurá-la, a ver os olhos abrirem. Costumava contar às meninas a história do nascimento como um romance de aventura que sempre terminava com a afirmação de que Olívia nascera primeiro que Clarice. Como ele podia afirmar, perguntavam. Afinal se nem Lina nem o médico sabiam dizê-lo, como aquele rapaz, que na época era um menino, era tão categórico? A reposta era sempre a mesma: sei porque sei! A verdadeira resposta viria anos depois: sei porque jamais tirei os olhos de Olívia desde o primeiro instante em que a vi. Durante dezassete anos guardou o segredo. Fora para Lisboa, quatro anos antes, logo após a morte de Manuel, numa tentativa desesperada de esquecer aquele amor que o consumia. Olívia tinha treze anos; ele, vinte e quatro. As meninas o viam como o irmão mais velho. Ele tinha namoradas na vila, uma atrás da outra, e amantes também. As mulheres o satisfaziam sexualmente e só.
Jamais tivera qualquer pensamento perverso, pecaminoso com Olívia. Ela era uma criança, mas estava tornando-se uma mulher. Por isso ele fora embora. Agora, quatro anos depois, António regressava. Com ele vinha todo o sentimento. Como se nunca tivesse partido. No período em Lisboa, trabalhou duro. Encontrou o que queria fazer. O comércio lhe agradava. Seria rico, ganharia o mundo e voltaria à quinta, bem-sucedido, para pedir a mão de Olívia. Acabara de abrir uma pequena venda na capital portuguesa. O ano era 1933. O país vivia sob as rédeas do temido António Salazar. A nova Constituição, recém-aprovada, selava a implantação do Estado Novo, legitimando um regime autoritário e repressivo que se estenderia por quatro décadas. António passava longe da política. Salazar era apenas alguém com o mesmo nome próprio que ele. Os amigos mais engajados olhavam com receio o panorama que se formava. Totalitarismo, fim dos partidos, muito poder na mão de um só homem. As notícias do restante da Europa também preocupavam. Na Itália, Il Duce, Benito Mussolini, permanecia, sozinho, à frente do governo e do Partido Nacional Fascista. Na Alemanha, um outro ditador, austríaco naturalizado, chegava ao poder. Adolf Hitler tornava-se primeiro-ministro do país. Mas o que tudo isso tinha a ver com António e os planos de um futuro próspero e feliz ao lado de Olívia? Nem no mais improvável dos delírios ele poderia imaginar que o futuro de sua família seria marcado, para sempre, pela ascensão do Terceiro Reich.
António pouco mudara desde que deixara a quinta, quatro anos antes. Talvez uma certa seriedade no olhar, consequência da responsabilidade do trabalho, mais do que do passar dos anos. No entanto, a pequena mudança o colocava no rol dos homens, mais que bonitos, interessantes. Era viril. Os braços continuavam musculosos e sobressaíam sob a camisa branca que ele dobrara no antebraço, depois de tirar a gravata e afrouxar o colarinho. Segurava displicentemente com o dedo indicador o casaco jogado nas costas. Olívia não conseguia desviar os olhos dele. O que acontecera naqueles últimos anos que tinham transformado António no homem mais belo do mundo?, ela pensava enquanto baixava os olhos e fingia secar uma lágrima com o lenço. Teria de falar com ele cedo ou tarde. Conseguira fugir durante o enterro, agora não dava mais. Ele caminhava em sua direcção. Olhou para os lados, não havia ninguém, apenas ela.
Os olhos se cruzaram e ficaram. Olívia era praticamente uma menina quando António deixou a quinta. Houve uma época, quando as gémeas ainda eram pequenas, em que Olívia teve raiva daquele menino que roubava as atenções do pai. No entanto, era tão protector e cuidadoso, que tanto Olívia quanto Clarice passaram a adorá-lo. Era a referência masculina no lugar do pai ausente. Agora Olívia via António com olhos limpos de passado, olhos de mulher. Isso a fazia corar. Quanto mais ele se aproximava, mais o calor lhe subia pelo corpo, até tomar as maçãs do rosto. Olívia!, foi a única palavra que saiu da boca de António. O coração acelerado, nada mudara. A distância e o passar dos anos só tinham aumentado o que ele sentia por Olívia. Tornou-se o homem mais feliz do mundo quando, naquela troca de olhares, sentiu que era correspondido. Depois desse reencontro foi tudo muito rápido. Não se passaram seis meses, e a quinta reviveu momentos de alegria como não acontecia desde o anúncio da gravidez de Josefina, dezoito anos antes. O casamento de António e Olívia ocorreu no começo de 1934. A lua-de-mel foi em Lisboa, na casa de onde Olívia sairia, seis anos depois, rumo a Bordeaux, para não mais voltar». In Luize Valente, Uma Praça em Antuérpia, 2015, Saída de Emergência, colecção A História de Portugal em Romances, 2015, ISBN 978-989-637-844-8.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT