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O
Outono da Saudade
«(…) Suas Altezas estavam fora de
Lisboa, mas não deixava de ser uma temeridade transpor os portões do paço com a
Infanta por lá. Só que a necessidade falava mais alto, fazia esquecer o tamanho
da ousadia. Porém não era dona Leonor quem acompanhava Sua Senhoria naquela quase
manhã, era dona Paula Vicente. Não ficou decepcionado, antes grato pelo quase milagre
que viveria a seguir. O destino permitia-lhe avistar de perto a irmã de El Rei,
falar com ela depois, olhar o céu no claro azul de seus olhos. Foi a maior alegria
da sua existência cinzenta... Com estas recordações as noites vão caindo mais devagar,
tristes. Ou a tristeza que alberga é tão grande que chega para cobrir as noites
todas que vierem. Cansado começa a falhar a conta das estrelas, o sentido virado
para dentro de si mesmo a decifrar lampejos de alma embrulhados no aroma de outros
anos. Ousou um dia crer no direito a ser ditoso como toda agente que na terra não
semeia o mal... Não logrou obter o que buscava, só a compensação de gratas lembranças
e um punhado de rimas. E a companhia da saudade, que sempre lhes dá passagem livre
sem nada pedir em troca. Compreendo que é a força do seu sentimento que doravante
me guia, nesta ronda. Eu voltei por Sua Senhoria, ainda vi os derradeiros instantes...
Ela dedicou-lhe a última e mais sentida lembrança. Ele orienta para ela, para os
momentos que viveram, a saudade que lhe corre no sangue.
Madrugada.
Os Pássaros da Bonança
Ano da graça do Senhor de 1549. O
Paço da Ribeira não acordou, ainda. Nem os primeiros raios de sol ousaram varar
a manhã e já o rumor do Tejo, a agitação nos armazéns à beira rio, na Casa da Mina,
da Índia, chegam ao quarto destinado à Senhora Infanta. Não é o mesmo onde
nasceu, onde morou até aos dezasseis anos antes de lhe montarem a própria moradia,
mas agrada-lhe esta vista desafogada com cheiro a maresia. Por tanto gostar da
paisagem, do bulício criado pelos lugares de transacção, também seu pai El Rei Manuel
I mandara construir o novo palácio, pronto se mudando da alcáçova de S. Jorge. A
filha deve trazer no sangue igual atracção pelos espaços rasgados, o rio alegre
e novos mundos para a frente. Vem cada vez menos nos últimos tempos por muito prezar
a independência, o afastamento das intrigas da corte, porém não pode negar como
lhe faz bem estar tão perto da vida a pulsar com mais força. Por detrás da janela
dá uma olhada ao movimento exterior, intenso para os lados do cais. Mãos
invisíveis misturam as cores de uma paleta viva de gentes do reino, almas de
outras paragens, bestas carregadas, caixas, gigas, algumas direitas às tabernas
das cercanias, às costas dos escravos. É o lugar mais importante da cidade, espelho
de uma próspera nação no tempo de seu pai. Com Suas Altezas fora de Lisboa sente-se
bem por ali alguns dias, enquanto lhe reformam a moradia e renovam o mobiliário.
Seja pelo ar da madrugada ou ausência temporária de novas tristes, o paço
parece menos carregado, mais arejados os corredores...
Até
o riso das aias e escudeiros se expande sem constrangimento, longe da vigilância
rigorosa de dona Catarina. Por dois dias não precisam falar castelhano em repetidas
vénias, só o português que em Santa Clara os moradores apuram. Dona Paula Vicente
vem tirá-la da janela lembrando o sol quase a nascer, o passeio lá fora, as orações
na capela. O tempo arrefeceu desde a véspera, melhor que vista o brial fino, porém
de merino puro, para evitar agressão da maresia. Entrega-lhe ainda o terço de contas
de pérola e ligamentos em corrente de ouro. Assim protegidas atravessam o andar
nobre desde a câmara privada, percorrem o labirinto de corredores a caminho da varanda
fortificada, ligada ao corpo principal do paço. Passam a célebre sala dos
embaixadores, por cima dos ministérios do Reino e da Justiça, o Arquivo Real.
Descem ao piso inferior num curto espaço de tempo, sem abrandar a marcha,
enquanto guardas, mordomos, aias e escudeirosainda vestem seus fatos, dão lustro
ao calçado e às fivelas». In Maria Helena Ventura, A Musa de Camões,
Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-940-6.
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