quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

A Musa de Camões. Maria Helena Ventura. «…alheios contentamentos a um coração descontente, não lhe remediando o que sente, lhe dobram o que padece»

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O Outono da Saudade
«(…) Suas Altezas estavam fora de Lisboa, mas não deixava de ser uma temeridade transpor os portões do paço com a Infanta por lá. Só que a necessidade falava mais alto, fazia esquecer o tamanho da ousadia. Porém não era dona Leonor quem acompanhava Sua Senhoria naquela quase manhã, era dona Paula Vicente. Não ficou decepcionado, antes grato pelo quase milagre que viveria a seguir. O destino permitia-lhe avistar de perto a irmã de El Rei, falar com ela depois, olhar o céu no claro azul de seus olhos. Foi a maior alegria da sua existência cinzenta... Com estas recordações as noites vão caindo mais devagar, tristes. Ou a tristeza que alberga é tão grande que chega para cobrir as noites todas que vierem. Cansado começa a falhar a conta das estrelas, o sentido virado para dentro de si mesmo a decifrar lampejos de alma embrulhados no aroma de outros anos. Ousou um dia crer no direito a ser ditoso como toda agente que na terra não semeia o mal... Não logrou obter o que buscava, só a compensação de gratas lembranças e um punhado de rimas. E a companhia da saudade, que sempre lhes dá passagem livre sem nada pedir em troca. Compreendo que é a força do seu sentimento que doravante me guia, nesta ronda. Eu voltei por Sua Senhoria, ainda vi os derradeiros instantes... Ela dedicou-lhe a última e mais sentida lembrança. Ele orienta para ela, para os momentos que viveram, a saudade que lhe corre no sangue.

Madrugada. Os Pássaros da Bonança
Ano da graça do Senhor de 1549. O Paço da Ribeira não acordou, ainda. Nem os primeiros raios de sol ousaram varar a manhã e já o rumor do Tejo, a agitação nos armazéns à beira rio, na Casa da Mina, da Índia, chegam ao quarto destinado à Senhora Infanta. Não é o mesmo onde nasceu, onde morou até aos dezasseis anos antes de lhe montarem a própria moradia, mas agrada-lhe esta vista desafogada com cheiro a maresia. Por tanto gostar da paisagem, do bulício criado pelos lugares de transacção, também seu pai El Rei Manuel I mandara construir o novo palácio, pronto se mudando da alcáçova de S. Jorge. A filha deve trazer no sangue igual atracção pelos espaços rasgados, o rio alegre e novos mundos para a frente. Vem cada vez menos nos últimos tempos por muito prezar a independência, o afastamento das intrigas da corte, porém não pode negar como lhe faz bem estar tão perto da vida a pulsar com mais força. Por detrás da janela dá uma olhada ao movimento exterior, intenso para os lados do cais. Mãos invisíveis misturam as cores de uma paleta viva de gentes do reino, almas de outras paragens, bestas carregadas, caixas, gigas, algumas direitas às tabernas das cercanias, às costas dos escravos. É o lugar mais importante da cidade, espelho de uma próspera nação no tempo de seu pai. Com Suas Altezas fora de Lisboa sente-se bem por ali alguns dias, enquanto lhe reformam a moradia e renovam o mobiliário. Seja pelo ar da madrugada ou ausência temporária de novas tristes, o paço parece menos carregado, mais arejados os corredores...
Até o riso das aias e escudeiros se expande sem constrangimento, longe da vigilância rigorosa de dona Catarina. Por dois dias não precisam falar castelhano em repetidas vénias, só o português que em Santa Clara os moradores apuram. Dona Paula Vicente vem tirá-la da janela lembrando o sol quase a nascer, o passeio lá fora, as orações na capela. O tempo arrefeceu desde a véspera, melhor que vista o brial fino, porém de merino puro, para evitar agressão da maresia. Entrega-lhe ainda o terço de contas de pérola e ligamentos em corrente de ouro. Assim protegidas atravessam o andar nobre desde a câmara privada, percorrem o labirinto de corredores a caminho da varanda fortificada, ligada ao corpo principal do paço. Passam a célebre sala dos embaixadores, por cima dos ministérios do Reino e da Justiça, o Arquivo Real. Descem ao piso inferior num curto espaço de tempo, sem abrandar a marcha, enquanto guardas, mordomos, aias e escudeirosainda vestem seus fatos, dão lustro ao calçado e às fivelas». In Maria Helena Ventura, A Musa de Camões, Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-940-6.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT