Cortesia
de wikipedia e jdact
«Pôs-te Deus sobre a fronte a
mão piedosa:
o que fada o poeta e o soldado
volveu a ti o olhar, de amor
velado,
e disse-te: vai, filha, sê
formosa!
E tu, descendo na onda
harmoniosa,
pousaste neste solo
angustiado,
estrela envolta num clarão
sagrado,
do teu límpido olhar na luz
radiosa...
Mas eu... Posso eu acaso
merecer-te?
Deu-te o Senhor, mulher! O que
é vedado,
anjo! Deu-te o Senhor um mundo
à parte.
E a mim, a quem deu olhos para
ver-te,
sem poder mais... A mim o que
me há dado?
Voz que te cante e uma alma
para amar-te!»
«Porque descrês, mulher, do
amor, da vida?
Porque esse Hermon transformas
em Calvário?
Porque deixas que, aos poucos,
do sudário
te aperte o seio a dobra
humedecida?
Que visão te fugiu, que assim
perdida
buscas em vão neste ermo
solitário?
Que signo obscuro de cruel
fadário
te faz trazer a fronte ao chão
pendida?
Nenhum! Intacto o bem em si
assiste:
Deus, em penhor, te deu a
formosura:
bênçãos te manda o Céu em cada
hora.
E descrês do viver?... E eu,
pobre e triste,
que só no teu olhar leio a
ventura,
se tu descrês, em que hei-de
eu crer agora?»
«No Céu, se existe um céu para
quem chora,
céu para as mágoas de quem
sofre tanto...
Se é lá do amor o foco, puro e
santo,
chama que brilha, mas que não
devora...
No Céu, se uma alma nesse
espaço mora,
que a prece escuta e enxuta o
nosso pranto...
Se há pai, que estenda sobre
nós o manto
do amor piedoso... Que eu não
sinto agora...
No Céu, ó virgem! Findarão
meus males:
hei-de lá renascer, eu que
pareço
aqui ter só nascido para
dores.
Ali, ó lírio dos celestes
vales!
Tendo seu fim, terão o seu
começo,
para não mais findar, nossos
amores»
«Aquela que eu adoro não é
feita
de lírios nem de rosas
purpurinas,
não tem as formas lânguidas,
divinas,
da antiga Vénus de cintura
estreita...
Não é a Circe, cuja mão
suspeita
compõe filtros mortais entre
ruínas,
mem a Amazonas, que se agarra
às crinas
dum corcel e combate
satisfeita...
A mim mesmo pergunto, e não
atino
com o nome que dê a essa
visão,
que ora amostra ora esconde o
meu destino...
É como uma miragem que
entrevejo,
ideal, que nasceu na solidão,
nuvem, sonho impalpável do
Desejo...»
Sonetos
de Antero de Quental, in “Farol
das Letras”
JDACT