domingo, 31 de dezembro de 2017

No 31. Sonetos. Antero de Quental. «E a mim, a quem deu olhos para ver-te, sem poder mais... A mim o que me há dado? Voz que te cante e uma alma para amar-te!»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Pôs-te Deus sobre a fronte a mão piedosa:
o que fada o poeta e o soldado
volveu a ti o olhar, de amor velado,
e disse-te: vai, filha, sê formosa!

E tu, descendo na onda harmoniosa,
pousaste neste solo angustiado,
estrela envolta num clarão sagrado,
do teu límpido olhar na luz radiosa...

Mas eu... Posso eu acaso merecer-te?
Deu-te o Senhor, mulher! O que é vedado,
anjo! Deu-te o Senhor um mundo à parte.

E a mim, a quem deu olhos para ver-te,
sem poder mais... A mim o que me há dado?
Voz que te cante e uma alma para amar-te!»

«Porque descrês, mulher, do amor, da vida?
Porque esse Hermon transformas em Calvário?
Porque deixas que, aos poucos, do sudário
te aperte o seio a dobra humedecida?

Que visão te fugiu, que assim perdida
buscas em vão neste ermo solitário?
Que signo obscuro de cruel fadário
te faz trazer a fronte ao chão pendida?

Nenhum! Intacto o bem em si assiste:
Deus, em penhor, te deu a formosura:
bênçãos te manda o Céu em cada hora.

E descrês do viver?... E eu, pobre e triste,
que só no teu olhar leio a ventura,
se tu descrês, em que hei-de eu crer agora?»

«No Céu, se existe um céu para quem chora,
céu para as mágoas de quem sofre tanto...
Se é lá do amor o foco, puro e santo,
chama que brilha, mas que não devora...

No Céu, se uma alma nesse espaço mora,
que a prece escuta e enxuta o nosso pranto...
Se há pai, que estenda sobre nós o manto
do amor piedoso... Que eu não sinto agora...

No Céu, ó virgem! Findarão meus males:
hei-de lá renascer, eu que pareço
aqui ter só nascido para dores.

Ali, ó lírio dos celestes vales!
Tendo seu fim, terão o seu começo,
para não mais findar, nossos amores»

«Aquela que eu adoro não é feita
de lírios nem de rosas purpurinas,
não tem as formas lânguidas, divinas,
da antiga Vénus de cintura estreita...

Não é a Circe, cuja mão suspeita
compõe filtros mortais entre ruínas,
mem a Amazonas, que se agarra às crinas
dum corcel e combate satisfeita...

A mim mesmo pergunto, e não atino
com o nome que dê a essa visão,
que ora amostra ora esconde o meu destino...

É como uma miragem que entrevejo,
ideal, que nasceu na solidão,
nuvem, sonho impalpável do Desejo...»

Sonetos de Antero de Quental, in “Farol das Letras

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