«Milhares de
judeus foram forçados a conversão em Portugal, por decreto real, no fim do
século XV. Passaram a ser chamados de cristãos-novos. Em seguida veio a
Inquisição (maldita). Muitos conversos fugiram para o
Brasil. Alguns se embrenharam pelo Sertão. No breve período de domínio holandês
no Nordeste, puderam retornar ao judaísmo. Fundaram em Recife a primeira
sinagoga das Américas. Com a expulsão dos batavos, no século XVII, um pequeno
grupo deixou Pernambuco. Após uma conturbada viagem chegaram à Ilha de
Manhattan, onde estabeleceram a primeira comunidade judaica de Nova York».
«Ana? Ana, é você? Ana? A voz soou longe quando a mão tirou
o telefone da base. Era Ioná. Mas o que ela estava fazendo no meio daquela
praia? Ana reconhecia o sotaque levemente arrastado, mas não a via. O telefone
pendia no ouvido, meio caído sobre o travesseiro. Aos poucos foi despertando. A
praia foi sumindo e, subitamente, ela pulou da cama. Ioná!, respondeu, atónita,
ao mesmo tempo que olhava o relógio na cabeceira: 6h05 da manhã. Tinha dormido
menos de quatro horas. Levantou e saiu do quarto. Que bom te ouvir! Estou tentando falar há dias!
Deixei vários recados e nada! Precisa saber o que está acontecendo por aqui. Desculpa
não ter ligado antes...., e ter-te acordado. A voz de Ioná saiu baixa, abafada.
Pode ligar à hora que quiser! Mas ainda é cedo aí... Ana sentiu que algo estava
errado. O que foi, Ioná? Do outro lado, silêncio. Ioná olhou o relógio e
esfregou os olhos. Não pregara o olho a noite toda. Tinha andado mais de
setenta quadras, talvez oitenta. Uma leve brisa era o último resquício da
madrugada fresca da Primavera. Logo surgiriam os primeiros raios de sol e, com
eles, os passos, as buzinas, o entra e sai do metropolitano. Mas, naquele
momento, a rua era apenas dela e de uns poucos pedestres que voltavam do
trabalho ou da noitada. Ioná? Que houve? Está
bem? Uma Ana aflita trouxe Ioná de volta. Ela estava sozinha, próxima ao
cruzamento de Chatham Square, no coração de Chinatown. Aproximou o telefone da boca. Estava numa
cabine de esquina. Eu
não vou, Ana. Estou ligando para dizer que não vou. Agora foi a vez de Ana ficar muda.
14
de Março de 2000. Manhã
O relógio tocou às 5h15. Ana despertou com a sensação de
quem acabava de pegar no sono. Todas as vésperas de viagem era igual. Virava
para lá e para cá, levantava, deitava. Ilaga, estirado ao lado, mantinha os
olhos abertos, em vigília. Fitava Ana profundamente. Dois olhos perdidos numa
bola de pelos. Não me olhe assim..., não o posso levar. O cão virou o rosto e
se pôs de barriga para cima. Ela afagou o peito branco e abraçou o bicho. Mesmo
depois de três anos era doloroso deixá-lo a cada partida. Olhou o relógio mais
uma vez e suspirou. A ida a Recife não estava programada. Quando recebeu o
telefonema da professora Ethel, com passagem e hospedagem pagas, ela não pôde
recusar. Não tinha como recusar. Levantou e pulou para o chuveiro. Teria uma
longa jornada pela frente. Acompanhar a historiadora numa palestra era bem mais
do que uma simples viagem de trabalho. Era um verdadeiro mergulho em horas e
horas de conversas instigantes misturadas a deliciosas comidas e encontros
inesperados. Pensando bem, era do que ela estava precisando.
Ana, corre, filhinha, nós já estamos atrasadas! Moishe,
cuida bem da minha meidele, não vai dar torradas com requeijão! Ai, eu morro
só de pensar que ela vai ficar aqui. Osvaldo, passeia com ela todos os dias
duas vezes no mínimo, no mínimo! O segundo no mínimo saiu estridente e fino, com um toque
dramático que colocava a professora Ethel no patamar das divas de Hollywood. A
idade era um segredo mais bem guardado que as tábuas com os dez mandamentos,
costumavam falar os alunos do curso de doutorando da Universidade de São Paulo.
Ela também era dona de belíssimos olhos azuis que lhe concediam o poder de
hipnotizar qualquer que fosse o interlocutor». In Luize Valente, O Segredo do
Oratório, 2012, Editora Record, Brasil, 2012, ISBN 978-850-140-170-0.
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