sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Poesia. Manuel Alegre. «Que mil flores desabrochem. Que mil flores (outras nenhumas) onde amores fenecem que mil flores floresçam onde só dores florescem»

Cortesia de wikipedia e jdact

Natal
«Acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.
Era a gente a correr pela música acima.
Uma onda uma festa. Palavras a saltar.

Eram carpas ou mãos. Um soluço uma rima.
Guitarras guitarras. Ou talvez mar.
E acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.

Na tua boca. No teu rosto. No teu corpo acontecia.
No teu ritmo nos teus ritos.
No teu sono nos teus gestos. (Liturgia liturgia).
Nos teus gritos. Nos teus olhos quase aflitos.
E nos silêncios infinitos. Na tua noite e no teu dia.
No teu sol acontecia.

Era um sopro. Era um salmo. (Nostalgia nostalgia).
Todo o tempo num só tempo: andamento.
de poesia. Era um susto. Ou sobressalto. E acontecia.
Na cidade lavada pela chuva. Em cada curva
acontecia. E em cada acaso. Como um pouco de água turva
na cidade agitada pelo vento.

Natal Natal (diziam). E acontecia.
Como se fosse na palavra a rosa brava
acontecia. E era Dezembro que floria.
Era um vulcão. E no teu corpo a flor e a lava.
E era na lava a rosa e a palavra.
Todo o tempo num só tempo: nascimento de poesia».


Flores para Coimbra
«Que mil flores desabrochem. Que mil flores
(outras nenhumas) onde amores fenecem
que mil flores floresçam onde só dores
florescem.

Que mil flores desabrochem. Que mil espadas
(outras nenhumas não)
onde mil flores com espadas são cortadas
que mil espadas floresçam em cada mão.

Que mil espadas floresçam
onde só penas são.
Antes que amores feneçam
que mil flores desabrochem. E outras nenhumas não.


Última Página
«Vou deixar este livro. Adeus.
Aqui morei nas ruas infinitas.
Adeus meu bairro página branca
onde morri onde nasci algumas vezes.
 
Adeus palavras comboios
adeus navio. De ti povo
não me despeço. Vou contigo.
Adeus meu bairro versos ventos.
 
Não voltarei a Nambuangongo
onde tu meu amor não viste nada. Adeus
camaradas dos campos de batalha.
Parto sem ti Pedro Soldado.
 
Tu Rapariga do País de Abril
tu vens comigo. Não te esqueças
da primavera. Vamos soltar
a primavera no País de Abril.
 
Livro: meu suor meu sangue
aqui te deixo no cimo da pátria.
Meto a viola debaixo do braço
e viro a página. Adeus».
Poemas de Manuel Alegre, in “ist”

Cortesia de wikipedia/JDACT

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