terça-feira, 26 de abril de 2016

A Mística do Instante. O Tempo e a Promessa. Tolentino Mendonça. «As mãos são um organismo complexo, são um delta no qual desemboca uma vida que vem de muito longe, para transformar-se numa torrente imensa de acção. Há uma história das mãos; têm por direito próprio a sua beleza…»

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Do lado do excesso de comunicação
«(…) E de modo semelhante com os outros sentidos que implicam proximidade: o paladar e o tacto. Hoje, só os profissionais arriscam provas cegas das comidas ou bebidas. Mas, mesmo aí, são cada vez mais os olhos que comem, pelo investimento no impacto decorativo dos pratos, pelo requinte do design ou pela manipulação do próprio sabor. Para não falar do tacto. A nossa distância da natureza é tão grande que deixamos de saber coisas tão elementares como caminhar descalço, dobrar-se na clareira e afastar mansamente as folhas da fonte para beber devagarinho, ou acariciar a vida desprotegida que se avizinha de nós. Assim nos tornamos os analfabetos emocionais que somos, resumia o cineasta Ingmar Bergman. Não será tempo de voltarmos aos sentidos? Não será esta uma oportunidade propícia para os revitalizarmos? Não é chegado o instante de compreender melhor aquilo que une sentidos e sentido?

Redescobrir o tacto
Pensou-se, desde a Antiguidade clássica, que o primeiro dos sentidos fosse o tacto, mesmo se ele aparece só em terceiro lugar na escala que Aristóteles apresentava então. Na ordem da criação ele tem certamente a primazia. O desenvolvimento dos sentidos no fecto começa provavelmente com o tacto. Depois, com o nascimento, é também através do contacto físico que experimentamos a realidade: o frio e o calor, o familiar e o estranho, o desconforto e o consolo. Todo o objecto vem avaliado pelo nascituro através do tacto, que para isso o leva inevitavelmente à boca e às mãos. Muito legitimamente, o tacto vem descrito como o nosso grande olho primeiro. A pele recobre o nosso corpo, da cabeça aos pés. Ela divide e ao mesmo tempo une o mundo exterior e o interno. A pele lê a textura, a densidade, o peso e a temperatura da matéria. O sentido do tacto conecta-nos com o tempo e a memória: através das impressões do tacto fazemos intermináveis viagens sem as quais não seríamos quem somos. O tacto permite que não esbarremos apenas uns contra os outros, mas que existam encontros. Por isso, a pergunta que um dia Jesus fez no meio de uma multidão compacta continua a ser significativa: quem me tocou? Os discípulos bem tentavam, em vão, dissuadi-lo, lembrando que uma massa de gente o apertava e tocava de todos os lados. Mas o que Jesus afirma é que há um tocar e um tocar.
As mãos são um organismo complexo, são um delta no qual desemboca uma vida que vem de muito longe, para transformar-se numa torrente imensa de acção. Há uma história das mãos; têm por direito próprio a sua beleza; assiste-lhes o direito de ter o seu próprio desenvolvimento, seus desejos próprios, seus sentimentos, escreveu Rainer Maria Rilke. E o que dizemos das mãos podemos dizer da pele. A nossa autobiografia é assim também uma história da pele e do tacto, da forma como tocamos ou não, da forma como fomos e não fomos tocados, mesmo se essa continua, em grande medida, um relato submerso, em que não pensamos. E, contudo, ela tem tanto a ensinar-nos. Existe um tipo de conhecimento, não apenas na primeira infância, mas pela vida fora, que só nos chega através do tacto.
O pintor Miró falava sempre da origem táctil da sua arte. Na juventude, em Barcelona, teve por mestre o arquitecto Francisco Gali que, embora sendo um académico muito convencional, era capaz de arriscar por caminhos inesperados na iniciação dos seus estudantes. Miró confessa que não era propriamente um virtuoso no desenho e que o seu mestre ajudou-o assim: colocava-lhe uma venda nos olhos para que ele tocasse os objectos com os dedos e não apenas com o olhar. Miró fechava então os olhos, agarrava uma pequena pedra, tacteava-a, palpava-a, revirava-a várias vezes nas suas mãos. E desenhava-a. O pintor catalão dizia-se incapaz de chegar à representação do mundo de outra maneira». In José Tolentino Mendonça, A Mística do Instante, O Tempo e a Promessa, Colecção Poéticas do Viver Crente, Série JTM, Paulinas Editoras, 2014, ISBN 978-989-673-396-4.

Cortesia de Paulinas/JDACT