terça-feira, 12 de abril de 2016

Depois de tu partires. Maggie O’Farrell. «O sexto Verão da vida de Alice foi quente e seco. A sua casa tinha um jardim grande, e a janela da cozinha dava para o quintal e esse jardim, de modo que sempre que ela e as irmãs brincavam…»

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«A única coisa que Alice pôde ver de seu pai são as solas dos seus sapatos, de um castanho desbotado, marcadas pela terra das ruas por onde ele passara. Ela tem permissão para ir correndo pela calçada encontrar o pai quando ele chega do trabalho no fim da tarde. No Verão, às vezes sai de camisola, as suas pregas prendendo-lhe os joelhos. Mas hoje é Inverno, Novembro, talvez. As solas dos sapatos estão em volta de um galho de árvore no fundo do jardim. Ela vira a cabeça bem para trás. As folhas farfalham. Ouve a voz do pai. Um grito brota como lágrimas da sua garganta quando a corda grossa cor de laranja vem caindo, ligeiramente enroscada nos galhos como uma cobra. Apanhou? Ela pega a corda encerada com a mão enluvada. Apanhei. Os galhos sacodem balançados pelo seu pai. Ele põe a mão no ombro de Alice e abaixa-se para pegar o pneu. Ela fica fascinada com o relevo da textura por dentro da borracha preta e pesada. É isso que estrutura o pneu, tinha dito o homem da loja. O manchão liso sob o relevo da textura dá-lhe arrepio, mas ela não sabe bem porquê. Seu pai enrola a corda cor de laranja em volta do pneu e dá um nó apertado. Posso balançar-me agora?, pergunta, segurando o pneu. Não. Tenho de testar primeiro. O pai salta no pneu, testando para ver se está bem seguro. Ela olha para cima e vê o galho sacudir, depois olha para o pai. E se ele cair? Mas ele já está descendo e levantando-a, seus ossos pequenos, brancos e flexíveis como os dos pássaros.
Alice e John estão num café de um vilarejo de Lake District. É início do Verão. Ela pega num cubo de açúcar entre os dedos e, a luz por trás dele transforma os seus cristais em células aglomeradas de um organismo complexo debaixo de um microscópio. Sabia, diz John, que fizeram uma análise química dos cubos de açúcar nos açucareiros dos cafés e descobriram traços de sangue, sémen, fezes e urina? Alice mantém-se séria. Não sabia, não. Com os cantos da boca caídos, John nota o ar distraído dela. Alice está com soluço, e ele diz-lhe que para parar de soluçar é beber pequenos goles de água do copo. No horizonte ao longe, um avião risca uma linha branca no céu. Ela olha para as mãos de John, cortando um pedaço de pão com a mão e, subitamente, percebe que ama aquele homem. Olha pela janela e vê pela primeira vez a linha branca riscada pelo avião, a essa altura já toda esgarçada. Pensa em mostrar isso para John, mas não mostra.
O sexto Verão da vida de Alice foi quente e seco. A sua casa tinha um jardim grande, e a janela da cozinha dava para o quintal e esse jardim, de modo que sempre que ela e as irmãs brincavam lá fora podiam ver a mãe observando-as. O calor sufocante tinha secado os reservatórios, coisa nunca vista na Escócia, e ela ia com o seu pai até uma bomba no fim da rua buscar água em tonéis brancos. A água ecoava no fundo vazio dos tonéis. Entre a casa e o final do jardim havia uma pequena horta, com ervilhas, batatas e beterrabas tentando sobreviver no solo duro. Num dia especialmente lindo naquele Verão, Alice tirou a roupa, pegou num bocado daquela terra e esfregou-a no corpo inteiro como se fossem listras de tigre. Ela assustou as crianças nervosas e ingénuas do vizinho rugindo para elas pela sebe até que a sua mãe abriu a janela e gritou para que ela parasse com aquilo imediatamente. Então Alice saiu dali e foi juntar uns gravetos e folhas para construir uma tenda em forma de cone. A sua irmã mais nova ficou fora da tenda, choramingando para entrar, mas Alice disse que ela só poderia entrar se fosse um tigre. Beth olhou para o chão e para sua roupa, depois para a cara da mãe na janela da cozinha. Alice ficou sentada ali na escuridão húmida com o corpo cheio de listas, resmungando e olhando para o canto do céu que dava para ver pelo alto da tenda». In Maggie O’Farrell, Depois de tu partires, 2000, Editorial Presença, colecção Grandes Narrativas, nº 255, 2004, ISBN 978-972-233-241-5.

Cortesia de EPresença/JDACT